– Vejam só! – disse João Custódio, muito
nervoso, enquanto segurava os animais e brecava o carro. – Era só o que
faltava...
– Calma, João! Vamos pensar numa solução
– disse Frei Gaspar, enquanto descia do carro com os companheiros de viagem e
observavam o obstáculo.
Dr.
Sartório completou:
– Aqui não temos como passar, a menos que
voltemos atrás e peguemos outro caminho. Conheces outro caminho, João?
– Eu não conheço este lugar e não sei se
existe outra saída para a fazenda.
Com grande dificuldade, vieram de ré com
o carro de molas, até uma pequena clareira, ao lado da estrada, onde foi
possível fazer a volta. Retornaram alguns metros, quando encontraram um caboclo
que vinha do moinho, trazendo uma mula com dois sacos de farinha de trigo. À
pergunta de João Custódio sobre a existência de um caminho alternativo para a
fazenda Santa Bárbara, ele respondeu com convicção:
– Tem, sim. O moço leva o carro até à
primeira encruzilhada aí adiante, quebra pra esquerda, segue até o moinho,
depois passa pela
venda do seu Pedro Babi e encontra uma estradinha que vai por entre uns
pinheiros muito altos, anda por ela, segue até passar por um oratório de São João Maria,
anda mais um pouco e cai de novo na estrada da fazenda.
– Quanto tempo leva até lá?
– Tem uns par de léguas até lá, mas o
tempo vai depender aí dos cavalos, que já estão meio cansados.
De acordo com os conselhos do caboclo,
João Custódio seguiu a trilha indicada, enquanto os frades e o médico
conversavam animadamente.
– Quem é São João Maria de que nos falou
o amigo, ainda há pouco? – perguntou Frei Gaspar.
– João Maria – disse Frei Protásio – é um
personagem muito conhecido em toda essa região e surgiu no tempo da Revolução Federalista, que começou
no Rio Grande do Sul e teve repercussão aqui na região. João Maria, que se dizia
monge, era considerado santo pela maioria da população e peregrinou por estas
paragens durante muito tempo, fazendo milagres e curas milagrosas Depois de sua
morte, apareceu por aqui, por volta de 1912, outro personagem, de nome José
Maria, que se dizia sucessor de São João Maria. Também se considerava monge e
iniciou um movimento revolucionário, que reuniu milhares de caboclos que
lutavam pela posse das terras. Esse movimento foi chamado de a Guerra Santa do
Contestado...
– Que
teve mais de 20 mil mortos – completou dr. Sartório.
– Exatamente! – concluiu Frei Protásio. –
Foi uma guerra sangrenta que só acabou com a interferência de tropas federais.
Esse monge José Maria era, na verdade, um militar desertor que apareceu por
essas paragens. Usava barba grande, receitava remédios para a população pobre e
passou a liderar um movimento para a instauração da Monarquia Celeste, regida
por leis da cavalaria medieval. Como a maioria de seus seguidores, José Maria
também morreu em combate, logo no início do movimento, mas sua luta foi levada
adiante por seus companheiros.
– O
que significa o oratório?– perguntou Frei Gaspar.
– Tem
muitos deles pela região – completou João Custódio, que ouvia com atenção a
conversa. – Nos lugares onde São João Maria passou ou dormiu... o povo levantou
uma cruz, onde ele é venerado até hoje.
– João Maria foi um visionário, mas esse
José Maria não passava de um fanático e contestador – acrescentou dr. Sartório
Monge José Maria – Ele foi um fanático – disse Frei
Protásio –, mas aglutinou a seu redor uma população enorme de miseráveis,
pessoas sem terra, exploradas pelas madeireiras e pelos latifundiários da
erva-mate. Para se ter uma idéia, depois da construção da ferrovia São Paulo -
Rio Grande do Sul, mais de oito mil trabalhadores foram abandonados à própria
sorte, sem condições de retornar a seus lugares de origem. Por outro lado,
muitas pessoas foram expulsas de suas terras por jagunços, a mando de
poderosos. A chamada região do
Contestado era terra de ninguém e foi palco de uma sangrenta
luta, na qual o Governo Federal empregou sete mil homens, massacrando os
seguidores de José Maria, que foi morto
em combate, logo no começo da luta.
– Nessa guerra, acrescentou dr. Sartório
– foram empregados até aviões e artilharia...
– Sim – completou Frei Protásio. – Isso
demonstra a amplitude do conflito, que abriu profundas feridas na alma desse
povo, possibilitando o aparecimento dos messias salvadores. E foi o que
aconteceu com os nossos estimados monges.
– Compreende-se, então, a
veneração que o povo tem por esses personagens, os monges João Maria e José
Maria – concluiu Frei Gaspar.
– O sr. vai ouvir falar muito de São João
Maria – disse João Custódio –, vai encontrar seu retrato em muitas casas de caboclos,
que acendem velas diante de sua imagem e pedem favores e milagres. Dizem que
ele faz muitos milagres.
Cablocos combatentes da Guerra do Contestado
O carro chegou à venda de Pedro Babi.
João Custódio falou:
– Vamos parar um tempinho para os cavalos
descansarem enquanto os senhores tomam um café.
– Acho uma boa ideia – disse dr. Sartório.
– Preciso esticar as pernas, pois os solavancos dessa maravilhosa carruagem
perturbam a minha coluna.
Os quatro desceram do carro e se
dirigiram à venda. Ao se aproximar, Frei Gaspar observou um grande cavalo
preto, amarrado a uma árvore, ao lado da casa. Voltou-se para João Custódio e
perguntou:
– Nós não conhecemos esse cavalo?
– Conhecemos, sim. É o bagoal do
cavaleiro misterioso, o tal de Firmino Osório Constantino, que nós encontramos
naquela viagem para Lages. Ele deve estar aí na venda e já estou prevendo
confusão.
– Fica calmo, meu amigo. Iremos
verificar.
João Custódio, seguido pelos dois frades
e dr. Sartório entraram na venda. No balcão estava o proprietário, Pedro Babi,
um italiano simpático que recebeu a todos com entusiasmo.
A um canto do estabelecimento, sentado
num banco de madeira, com um copo na mão e uma garrafa de aguardente ao lado,
estava Firmino Constantino. O cão felpudo estava deitado a seu lado e rosnou
para os visitantes logo que entraram. Firmino, dirigindo-se a Frei Gaspar,
ironizou:
– Então, Reverendo, nos encontramos de
novo? Veja como o mundo é pequeno. Mas o que fazem aqui por esses pagos, dois
padres e mais um distinto senhor...
– O distinto senhor é o dr. Sartório –
completou Frei Gaspar.
– Muitas satisfações, dr. Sartório.
Permita que eu me apresente: Firmino Osório Constantino, seu criado – falou com
ironia. – Mas, o doutor aí é doutor... em que área do conhecimento?
– Ele é médico – falou Frei Gaspar,
enquanto Frei Protásio observava o curioso personagem. – Ele é o médico que examinará
Anita, na Fazenda Santa Bárbara, compromisso que assumi com a família da jovem.
– Ah!, sim!...examinar Anita, conforme o compromisso. Mas eu lhe disse que Anita não
tem nada.
– O cavalheiro por acaso também é médico?
– perguntou intrigado, dr. Sartório.
– Não sou médico, apenas curioso.
– Se não é médico, como sabe que ela não
tem nada?
– A experiência da vida me ensina, dr.
Sartore... aliás, dr. Sartório. Eu ando por aí, vendo e aprendendo.
– Por acaso, é parente da moça?
– Não sou parente, apenas um interessado,
diga-mos assim... um amigo muito especial.
Firmino fez uma pausa e completou:
– Mas não é o que pode parecer, doutor. O
meu interesse por essa moça está relacionado à esfera meramente espiritual ou
metafísica, como dizem os padres.
– Ah!... compreendo... – resmungou o
médico.
– Eu pedi ao Reverendo – referindo-se a
Frei Gaspar – que não retornasse à Fazenda Santa Barbara, pois ele não tem nada
a fazer ali. Mas o Reverendo é meio teimoso, como todos os tedescos e teimosia
muitas vezes tem seu preço.
– Espero que
isso não seja uma ameaça – respondeu dr. Sartório.
– Não é ameaça, apenas um aviso.
– O cavalheiro deve saber que vivemos num
país livre – disse o médico em tom incisivo – onde as pessoas têm o direito de
ir e vir.
– Esse direito, doutor, termina quando
alguém esbarra nas esporas de Firmino Constantino.
– O cavalheiro é muito presunçoso.
– É só esperar para ver. Depois, não
digam que eu não avisei. Por enquanto, faço uso da advertência e da
diplomacia. Quero convencer o frade alemão que ele não tem nada a ver com
Anita, porque ele não é dessa região, não é parente da moça, mal a conhece.
– E
o sr. a conhece, por acaso?
– Eu a conheço há muito tempo, os nossos
destinos estão intimamente ligados. Eu tenho uma nobre missão para ela.
Firmino
acabou de falar, bebeu um último gole de cachaça e saiu devagar, tilintando as
esporas no assoalho da venda, sempre acompanhado do temido cão. Ao chegar à
porta, voltou-se para Frei Gaspar:
– Não se esqueça da senha, frade: Vae
victis! Mas agora, preciso ir, pois tenho um servicinho a fazer aqui perto
e não vai demorar. Boa tarde para todos. Ainda nos veremos por aí.
João Custódio aproximou-se do balcão e
perguntou a Pedro Babi se conhecia o estranho personagem, mas foi informado
que era a primeira vez que ele aparecia por ali. Então, completou:
– Veja, Frei Gaspar, são muitas as
coincidências. A árvore caída na estrada, a presença desse Caipora aqui na
venda... sem falar de tudo o que já aconteceu antes, como o sr. deve estar
lembrado. Ele não quer mesmo que o sr. chegue à fazenda.
– Ele não tem que querer ou não querer,
meu amigo – acrescentou dr. Sartório.
– Não quer, porque ele é o Coisa Ruim em
pessoa. E a moça está possuída por ele. O dr. não reparou naquele cachorrão, com fogo
nos olhos?... Nós já encontramos esses
dois de outra vez e não ficamos com boas lembranças
– O meu amigo está impressionado. Não
existe Coisa Ruim e esse sujeito deve ser um dos muitos malucos que andam
perdidos por aí...
– É melhor esperarmos para ver.
– O homem assusta – falou Pedro Babi que
até aquele momento se mantinha calado. – Bebeu quase uma garrafa de cachaça e
não pagou..
– O sr. devia ter cobrado – insistiu o
médico.
– Não me atrevi. Quando vi o cachorrão
com aqueles olhos de brasa fixados em minha pessoa, não tive coragem.
Os viajantes, depois de tomarem um café
quente, embarcaram novamente no carro e seguiram viagem pelo caminho indicado com
mais detalhes por Pedro Babi. Todos seguiam em silêncio enquanto meditavam
sobre as ameaças de Firmino Constantino. Foi o médico quem retomou a conversa:
– Os frades, meus amigos, não precisam ficar atemorizados
com as ameaças desse sujeito. Ele deve ser algum fazendeiro rico sem nada para
fazer que se transformou num cavaleiro andante, uma espécie de Don Quixote das
coxilhas, à procura de moinhos de vento para combater. E como o Cavaleiro da
Triste Figura, ele tem lá também a sua Dulcinéia, no caso a nossa menina Anita,
que não imagina quem seja o seu protetor e admirador, obsecado por
esse tipo especial de paranóia.
– Paranóia ou não – retrucou Frei Gaspar
–, o fato é que existem alguns pontos que eu não consigo explicar...
– Por exemplo?
– A senha: Vae victis! Quem primeiro a mencionou foi Anita. E o sr. viu como
Firmino a repetiu. Parece que existe um elo de ligação entre os dois.
– Não deixa de ser no mínimo curioso
encontrar-se por aí um fazendeiro sem muitas letras, a pronunciar frases em
latim. Isso talvez nem o dr. Freud explique.
Depois de uma hora de viagem, os nossos
viajantes alcançaram a estrada que levava até a Fazenda Santa Bárbara, seguiram
adiante, passaram pelo lajeado onde acontecera o acidente com a carreta e se
aproximaram da casa de Silvério, quando verificaram que algo inusitado ali
acontecia. Umas quatro ou cinco pessoas falavam nervosamente, apontavam para a
estrada, outros entravam e saíam da casa. João Custódio parou o carro, desceu e
aproximou-se para verificar. Voltou muito assustado:
– Houve uma desgraça. D. Lurdes, a mulher
de Silvério, foi morta. Seu corpo foi encontrado ainda há pouco pelo marido.
Os dois frades, acompanhados pelo médico,
desceram rapidamente do carro e se dirigiram à porta de entrada
da casa, onde se depararam com um quadro dantesco. O corpo de d. Lurdes estava
caído, as roupas e a pele estraçalhadas,
como se tivessem sido atacadas por um animal feroz. Silvério estava a um canto,
paralisado, sem entender o que tinha acontecido. Dr. Sartório se aproximou,
levou a mão ao pescoço da vítima e o apalpou:
– Está morta! Mas não há muito tempo,
pois o corpo ainda está quente. O que aconteceu aqui, pessoal?
– Não sabemos – respondeu um vizinho da
casa. – Só ouvimos os gritos e o galope de cavalo na estrada.
– Eu vi um homem a cavalo, seguido por um
cachorro muito grande, saindo daqui – acrescentou outro.
Ao ouvir essas palavras, Frei Gaspar
entrou em grande aflição, retirou-se
para um canto da sala e manteve o olhar perdido
no vazio e
seu pensamento dirigiu-se a Deus e a
Virgem Maria, em busca de ajuda e conselhos, pois atravessava um momento de
desespero. Voltou-se para o lado oposto e qual não foi o seu espanto. Escrita
com sangue na parede, estava a senha maldita: Vae victis! Aproximou-se
de Frei Protásio, mostrou-lhe a inscrição e completou:
– Acho que vou desistir, meu irmão. Até
agora eram só palavras, ameaças, mas ele
passou aos fatos. Esse homem não quer que cheguemos à fazenda. Existe algo de
muito assustador nisso tudo.
– Eu também não compreendo o que
aconteceu – respondeu Frei Protásio. – Existem poderes maléficos que agem aqui.
Dr. Sartório juntou-se ao grupo, viu a
senha gravada em sangue, ficou pensativo e depois falou:
– Antes de mais nada, acho que é preciso procurar
as autoridades locais para uma minuciosa investigação. Aproximou-se de um dos
presentes, seu Onofre, e perguntou quem era a autoridade responsável do lugar.
O homem informou:
– Existe um delegado, no distrito de Anita
Garibaldi. Ele não mora na vila, mas numa fazenda a seis léguas daqui. É o seu
Otacílio Brito, homem destemido. Penso que devemos chamá-lo.
– Então, meu amigo, vamos tomar logo essa
providência. Quem poderá buscá-lo ?
– O José Inácio é bom cavaleiro. Ele tem
uma égua baia, boa de trote. Dentro de umas três a quatro horas estará lá.
– Muito bem, seu Onofre, mãos à obra!
Voltando-se
para os dois frades que estavam calados, arrematou:
–
Meus amigos, agora só nos resta aguardar a chegada da lei, pois o que aconteceu
aqui, na verdade, foi um crime bárbaro e os culpados devem pagar por ele. Sugiro que
prossigamos até a Fazenda
Santa Bárbara para conhecermos a srta. Anita. Quem sabe ela tem alguma coisa a
ver com isso.
Os frades concordaram, mas antes, Frei
Gaspar se dirigiu a Silvério, que estava calado num canto da sala:
– Meu filho, eu lamento o que aconteceu.
Só nos resta rezar pelo descanso da alma de sua finada esposa. Deves tomar as providências para o enterro, que deverá ocorrer amanhã. Eu
virei até aqui para encomendar a sua alma.
O carro de molas, com João Custódio na
boleia se colocou novamente em marcha. Uma hora depois chegava à fazenda e os
viajantes encontraram Pacheco, logo na entrada, pois ele acabara de saber do
ocorrido por um peão que estivera no local do crime. Introduziu os
recém-chegados nas dependências da casa principal, e d. Madalena, sua mãe,
ofereceu-lhes uma refeição, pois todos demonstravam fome e cansaço.