A seguir, estou publicando um capítulo de meu livro Menino Tropeiro, com lembranças e recordações de outros tempos, que marcaram a minha infância, tempos que não voltam mais.
"A população de Cerro Negro quando para lá nos mudamos naquele ano de 1935 era constituída de pequenos e grandes proprietários de terra de origem brasileira, mas também tinha muitos italianos, dedicados ao comércio, à agricultura e à criação de suínos e de pequenos animais.
No
início do ano de 1936, começaram as aulas na escola estadual e meu pai me
matriculou no primeiro ano do primário. Uns cinquenta alunos faziam parte das
quatro turmas do primeiro ao quarto ano e eles tinham aulas simultaneamente com
um único professor. Ele se desdobrava para ensinar coisas diferentes para
alunos de níveis diversos. Assim, enquanto alfabetizava o primeiro ano, passava
lições para as outras séries. Algumas matérias, como história do Brasil, eram
ministradas simultaneamente a todas as turmas.
Cada
aluno recebeu o livro da respectiva série e também uma lousa, onde deveria
escrever as lições e fazer os exercícios, pois naqueles tempos quase não se
fazia uso de cadernos. Papel era um luxo para as pequenas escolas do interior.
Cada aluno carregava, preso à lousa, um vidrinho com
água e um pano, que molhava, e com o qual apagava as lições anteriores. Mas, se
acabasse a água, uma cusparada também resolvia o problema desde que,
naturalmente, o ato não fosse presenciado pelo mestre.
Com tão grande número de alunos, a disciplina se fazia imperiosa,
razão para o uso da palmatória, depois abolida de todas as escolas do país. De
acordo com a gravidade da falta, o aluno recebia um determinado número de bolos como eram chamadas as batidas
cadenciadas sobre a palmas de suas mãos.
Os
alunos que frequentavam a escola estadual vinham do povoado e da periferia.
Alguns moravam em sítios e fazendas e faziam um longo percurso até a escola,
usando as próprias pernas ou, então, vinham a cavalo. O povo da região
valorizava o ensino dos filhos e não media
sacrifícios para que
estudassem, embora muitos deles
ajudassem nas tarefas do campo ou nos cuidados com o gado nas fazendas. À época
das colheitas, muitos alunos faltavam às aulas, pois precisavam ajudar os pais
para os produtos não se perderem nas lavouras.
Pouco
a pouco meu pai estabeleceu relações com o povo do lugar e as pessoas o
procuravam para resolver diversos problemas. Passou a ser convidado a visitar
residências e fazendas, onde lhe dispensavam acolhida respeitosa. Mantinha
também boas relações com a comunidade italiana local, que tinha algumas
tradições curiosas, como a passarinhada e a batida surpresa.
A passarinhada se realizava
em determinado dia e consistia num grande almoço, cujo prato principal era uma
macarronada, acompanhada da carne de pequenos pássaros. Dias antes, os garotos
saíam pelos matos atrás de todo tipo de passarinho, que abatiam com suas fundas
certeiras. Caçavam centenas de pássaros, depois depenados e cozidos, servidos
com macarrão, acompanhados de vinho. A primeira vez que minha família
participou desse almoço, senti repugnância e não comi. Certamente, hoje, tal
costume seria abominado pelos ecologistas, mas os tempos eram outros.
A batida
surpresa era outro
curioso costume dos italianos e que consistia
no seguinte: quando um membro da comunidade, de poder aquisitivo
razoável, fazia aniversário e deixava a data passar em brancas nuvens, sem
convidar os amigos para um almoço ou jantar ou mesmo para umas canecas de
vinho, o pessoal aguardava a chegada da noite, quando ele e a família já
estivessem dormindo. Aproximavam-se em silêncio da residência, momento em que
alguém batia à porta, enquanto rojões estouravam no céu e as sanfonas tocavam
músicas típicas italianas. Todos gritavam o nome do aniversariante e lhe davam
os parabéns.
Enquanto
se fazia grande algazarra em frente à casa da vítima, um grupo de homens
invadia os fundos da residência, atrás de galinhas, patos ou perus, que eram
levados até a cozinha, onde as melhores cozinheiras do povoado os preparavam
para o grande jantar em honra do homenageado. Corriam também até as adegas e
traziam garrafas ou pequenos barris de vinho, enquanto o povo, dentro da casa,
dançava animadamente. O ponto alto da comemoração era o jantar, durante o qual
se faziam discursos e se levantavam brindes em honra do dono da casa que, na
maioria das vezes, ainda em trajes de dormir, assistia a tudo atordoado, acompanhado
de seus familiares.
Entre
a gente nativa da região existia também um costume singular. Uma noite,
dormíamos tranquilamente em nossa casa, quando fomos acordados por orações e
cânticos, acompanhados do ruído de matracas à porta da escola. Minha mãe acordou
assustada e perguntou a meu pai o que aquilo significava e ele respondeu:
–
Fiquem todos quietos, porque se trata de uma cerimônia de encomendação das
almas.
–
Mas o que isso significa?
– Em noites da quaresma, o povo
se reúne no cemi-tério e dali
partem grupos de homens, mulheres e crianças. Visitam as casas e cantam e rezam
pelas almas. As pessoas da casa devem ficar em silêncio e só abrir as portas
depois do fim da cerimônia. Aí, sim, podem receber os visitantes e lhes
oferecer um café ou coisa parecida.
E
assim, aconteceu lá em casa. Dona Lina correu para a cozinha, fez um café,
cortou fatias de pão e levou tudo até a escola, onde os visitantes noturnos
aguardavam em silêncio. Depois que terminaram de comer, se retiraram e foram
atrás de outras residências do povoado, repetindo o mesmo cerimonial de
cânticos e orações pelas almas sofredoras. Confesso, aquela cerimônia noturna
tinha qualquer coisa de misterioso e impressionava as pessoas visitadas.
Minha mãe, uma mulher muito religiosa, se comoveu com a cerimônia e comentou o assunto com meu pai. Ele, então, observou que o ritual das almas se repetia em outras povoações da região e também em outras localidades do país. Trata-se, completou, de uma tradição oriunda na religiosidade portuguesa e é celebrada durante a quaresma e também no dia de finados.
O livro Menino Tropeiro, de autoria do autor deste blog, foi aprovado pela Lei Rouanet, mas, infelizmente, o autor não teve condições de procurar patrocinadores para a publicação da obra, em razão de uma grave doença de sua esposa, que veio a falecer, tendo se esgotado o prazo para a conquista de patrocinadores. Isso, entretanto, não impede que você leia o livro, uma vibrante narrativa que se passa nos anos 30 e 40, no Planalto catarinense, considerada muito especial, por especialistas. Pela lei Rouant, a edição do livro era para ser distribuída em escolas, mostrando aos jovens de hoje como era o ensino da época, em que os alunos do interior, não tinham cadernos, mas uma lousa, onde faziam as lições, não tinham condução, nem alimentação nas escolas. Se cometiam uma falta, eram submetidos à tortura da palmatória, depois abolida pelo governo de Getúlio Vargas. Estudavam na parte da manhã e à tarde pegavam uma enxada e iam para a roça, para ajudar os pais no cultivo da terra. Eram outros tempos, com a grave crise proporcionada pela guerra.
Para ler o livro, acesse: amazon.com.br
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