
O diálogo publicado a seguir foi extraído do livro O FILHO DE ANITA, de R.H.Souza, no qual o exorcista, personagem central da obra, trava um debate com o Senhor das Trevas que se expressa através de Anita, a jovem que todos julgam estar possuída pelo Demônio. O Espírito do Mal demonstra um amplo conhecimento das Escrituras, fato demonstrado em diversos casos de possessão pesquisados pelo autor. Anita revela também um conhecimento extraordinário sobre as pessoas, revelando seus segredos mais íntimos. A seguir, a íntegra do capítulo XI do referido livro.
“Os recém-chegados estavam reunidos com
Pacheco e sua mãe, na sala de jantar, à volta da grande mesa da família,
quando, ao final da refeição, Anita, sorridente, entrou e cumprimentou a todos.
– Então, Frei Gaspar, a que devemos a
honra da visita, agora acompanhado de um doutor e de mais um frade?
– Anita, trouxemos conosco o dr.
Sartório, um médico muito conceituado na cidade de Lages, que irá conversar um pouco contigo.
– Conversar sobre o quê?
– Ele quer te examinar para ver como está
a tua saúde.
– O sr. sabe que eu não tenho nada. Nunca
me senti melhor.
– Você tem um problema nos nervos, minha
filha –, disse d. Madalena – e o dr. Sartório é um médico muito famoso da
cidade grande. Ele gostaria de falar um pouco contigo.
– Eu sei que
o dr. Cláudio já esteve aqui, Anita – completou o médico. – Ele me fez um
diagnóstico do teu estado de saúde. Embora eu saiba da competência dele, apenas
gostaria de confirmar esse diagnóstico.
–
Eu já falei que não tenho nada –, esbravejou ela – atirando um copo em cima da
mesa que se espatifou.
Pacheco
e mais algumas pessoas presentes correram e seguraram a jovem, que esperneava e
espumava, com os olhos esbugalhados, ao entrar numa daquelas crises
costumeiras. Eles a colocaram numa cama no quarto anexo, e a seguravam,
fortemente, para que não quebrasse tudo. O médico se aproximou, tomou-lhe o
pulso e, a seguir, se voltou para os frades e disse a meia--voz:
–
Ela apresenta aceleração normal das pulsações, o que me parece impossível
diante de tanta agitação. Não encontro explicações para o fenomeno.
–
Não encontras explicações, porque tu não
sabes nada, seu médico de merda – gritou Anita, com acentuada alteração da voz.
Já não parecia a delicada jovem quem
falava, mas outra pessoa que falava por
ela. A voz se tornou cavernosa, brotando do fundo da
garganta. Dr. Sartório perguntou-lhe:
–
Dize-me uma coisa, Anita, sentes dor na cabeça, alguma dor ou pressão no peito?
–
Eu sinto é vergonha de ti, seu italiano trapaceiro. Passas os dias naquele
consultório a enganar os clientes. E como vai tua amante, a enfermeira Amália,
bonita e sedutora?
– Não vim aqui para discutir contigo
detalhes da minha vida particular, Anita. Vim até aqui para te atender
profissionalmente, a convite de Frei Gaspar e de Frei Protásio.
– Continuas traindo tua mulher com a bela
Amália, não é mesmo? Todo mundo na cidade sabe que gostas de pular a cerca.
– Vamos
deixar a vida particular do médico fora disso – arriscou Frei Protásio. – Ele
não andou léguas e léguas até aqui para ser ofendido.
– Ah! Então, o fradeco sabichão também
gosta de dar seus palpites. É o grande teólogo, o sabe-tudo do convento. O
orgulho é um dos sete pecados capitais, Reverendo.
João
Custódio que estava a um canto do quarto, neste ponto do diálogo, resolveu sair
de mansinho, sem ser percebido, mas as palavras da jovem o alcançaram na
soleira da porta:
–
Não precisas sair assim, furtivamente, João Custódio. Estás com medo que eu
conte que enganas o santo, surripiando parte do dinheiro das espórtulas? Fazes
teu pé de meia às custas da burrice do teu patrão, Frei Gaspar, e do
anterior... o tal de Frei... como era mesmo o nome dele? Ah! agora me
lembrei... era Frei Romualdo.Tens essa carinha de anjo, mas no fundo não passas
de um velhaco e espertalhão.
Frei
Gaspar achou que estava na hora de colocar um ponto final naquela ladainha
acusatória. Aproximou-se da cama e falou, com voz autoritária:
–
Em nome de Jesus Cristo e de sua Santa Mãe, diz-me, Anita, o que se passa
contigo. Não viemos até aqui para conhecer os pecados ou defeitos de quem quer
que seja. Tu, por acaso, sabes o que aconteceu hoje com a esposa do sr.
Silvério, d. Lurdes?
– Ela falava demais e teve o que mereceu?
– Mas.... como falava demais?
– Ela se metia em assuntos que não eram
da sua conta, por isso teve o que mereceu. E a morte da gorducha foi também um
aviso para todos aqueles que querem se meter onde não foram chamados.
– Anita – perguntou o Frade –, por acaso
conheces um cavaleiro que monta um cavalo preto, acompanhado de um cão raivoso?
O nome dele é Firmino... Firmino Constantino. Por acaso tu o conheces?
– E tem importância... conhecê-lo ou não?
– Existe uma coisa em comum entre esse
cavaleiro e a tua pessoa. É uma senha, uma senha maldita que ambos
pronunciam...
– Sim! - respondeu ela. Ai... Ai dos
vencidos! Vae victis! para os frades sabidos que sabem latim.
– Eu encontrei essa senha no local do
crime, na casa de Silvério. Estava escrita com o sangue da vítima, d. Lurdes.
–
Fui eu quem escreveu a senha na parede – disse a jovem, dando uma sonora gargalhada. – Espero que o
exemplo sirva para todos que querem me contrariar.
–
Ninguém quer te contrariar, Anita. Pelo contrário, todos estamos aqui para te
ajudar: Dr. Sartório, Frei Protásio e também a minha humilde pessoa, sem
esquecer tua mãe e teu irmão, naturalmente.
– O frade se acha tão humilde, assim?
Aliás, eu tinha esquecido que és filho
de Francisco, o famoso Poverello de Assis.
– Sim, temos muita honra, eu e meu irmão
aqui presente, em sermos filhos de São Francisco, o santo que mudou o mundo...
– Não me venhas com conversa fiada, seu
fradeco, pois antes, muito tempo antes de teu Francisco existir, eu já estava
por aí.
– Então, quem és? És o espírito do mal?
Se és o espírito do mal, porque não deixas o corpo de Anita? Eu te ordeno: Vade
retro! Vade retro, Satana!
– É só isso que sabes dizer? Usas as
mesmas palavras que usaste lá na torre
da igreja de Anita Garibaldi, onde eu te dei aquele tremendo susto,
quando o sino começou a tocar sozinho. Sozinho não, porque eu estava lá... mas
tu não conseguias me ver. Quase te borraste todo, não é verdade?
– Espírito impuro, em nome de Jesus e de
sua Santa Mãe, abandona agora este corpo, porque a alma dela pertence a Deus.
– Como ousas me dar ordens? Não tens
poderes para isso.
–
Tenho o poder que me foi dado por Jesus Cristo. “E chamando os seus doze
discípulos deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem e para
curarem toda a enfermidade e todo o mal”. Está escrito em São Mateus e como
sacerdote, sou um sucessor dos apóstolos.
Anita ou quem por
ela falava fez uma pausa, depois acrescentou:
–
Eu também conheço as escrituras. Tu te lembras deste trecho?: “E vi outra
besta que subia da terra e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro,
mas falava como um dragão. Exerceu toda a autoridade da primeira besta em
presença dela, e fez que a terra e todos os seus habitantes adorassem a
primeira besta... Adivinha quem sou? A primeira ou a segunda besta?
–
Não sei quem és – completou Frei Gaspar – , mas falas como o espírito do mal e
até citas o Apocalipse de São João, só que
esqueceste a continuação do texto, que diz: “E tive uma visão, e eis o Cordeiro que
estava sobre o monte Sião, e com Ele cento e quarenta e quatro mil, que trazem
o seu nome e o nome de seu Pai escritos em suas frontes. E ouvi uma voz do céu,
como voz de grandes águas, como voz de um grande trovão... Temei a Deus e
dai-lhe glória, porque é chegada a hora de seu juizo, e adorai aquele que fez o
céu e a terra, e o mar, e a todas as fontes das águas”.
– Basta, fradeco idiota! Não vais querer
disputar comigo para saber quem conhece mais as escrituras. Eu as conheço de
cor.
Anita
pronunciou as últimas palavras e calou-se. Frei Gaspar ainda insistiu em outras
perguntas, mas não obteve resposta. A jovem demonstrava grande cansaço.
Os três se retiraram do quarto e passaram
à sala, para onde a família também se retirou consternada. Ali estavam calados,
Pacheco, sua mãe, d. Madalena, e mais alguns empregados da fazenda. Dr.
Sartório estava espantado com o que presenciara: um verdadeiro duelo entre o
bem e o mal. E perguntou a Frei Protásio:
– O que o
nosso emérito teólogo acha do que acabamos de presenciar?
– Certamente que Anita não tem
conhecimentos para citar trechos do Apocalipse de São João e falar com tanta
desenvoltura de outros assuntos. Parece que alguém com mais conhecimentos fala
por ela. Estamos diante de um mistério, talvez mesmo diante de um caso de
possessão demoníaca. A Igreja excepcionalmente reconhece que tais casos
existem. Mas esperamos que a ciência do dr. consiga esclarecer melhor.
– Não tenho
muito a dizer, meu caro frei. Não estou espantado... estou estupefacto. Nunca
presenciei nada semelhante.
Pacheco
entrou no quarto onde estava Anita e, ao retornar, se aproximou do médico e
falou:
–
Ela está saindo da crise. Deverá dormir por um certo tempo. Depois que retornar
ao normal, talvez o sr. possa examiná-la
Algum
tempo depois o médico se aproximou do leito de Anita, que dormia profundamente.
Ficou a
observá-la e não viu nada que lhe
chamasse a atenção: a respiração era pausada, as pulsações normais. Lentamente
ela despertou e sentou-se na cama com os olhos fixos no médico.
– Que fazes aqui? – perguntou?
– Sou um médico e quero examiná-la.
– Achas que estou doente?
– Não posso adiantar nada, sem um exame
minucioso – respondeu ele.
– Pois se achas que é preciso um exame,
por que não o fazes logo, dr.... como é mesmo o teu nome?
– Dr. Sartório...
Enquanto pronunciava as últimas palavras,
ele se preparava para o exame médico mais complexo de toda a sua carreira. Meia
hora depois saiu do quarto e retornou à sala, onde todos o aguardavam com
ansiedade. Aproximou-se de Pacheco e de sua mãe e anunciou:
– Não encontrei nada de anormal em Anita.
Passada a crise, ela apresenta os sintomas de uma pessoa saudável.
Comportou-se, durante o exame, como uma pessoa normal, educada e sensível.
– Esta é a verdadeira Anita, doutor –
acrescentou d. Madalena. – Esta é a
minha filha que todos conhecem e amam. Ela sempre foi uma
menina muito meiga, simpática, educada. A outra Anita, nós não reconhecemos.
– Por enquanto, não posso fazer mais
nada. Talvez os frades, meus amigos, possam ajudá-la com suas preces. Não
disponho de recursos aqui para dar um diagnóstico definitivo. Acho que devemos
levá-la para Lages e lá, no Hospital Municipal, reunirmos uma junta médica de
várias especialidades e fazer alguns exames. Seria uma solução. Mas isso
depende da concordância da família.
–
Se for bom para ela – se antecipou Pacheco – eu me disponho a qualquer sacrifício
e a levarei a Lages.
– Se for bom
para ela, é bom para todos nós – acrescentou d. Madalena.
– Mas fique bem claro uma coisa: é uma
tentativa, sem garantia nenhuma de cura. Mas acho que vale a pena tentar.
– Se dr. Sartório acha, nós também achamos,
responderam em coro Pacheco e d.
Madalena.
– Então, é só marcarmos a data.
Enquanto falavam, Anita entrou na sala,
sorridente e perguntou:
– Quer dizer, então, que iremos todos a
Lages? Estive lá pela primeira vez, quando era pequena, em companhia de meu
pai. Tenho uma tia, irmã de meu falecido pai, que mora lá e foi na casa dela
que fiquei durante os meus estudos no Colégio Santa Rosa. Posso ficar hospedada
em sua casa.
–
Vamos iniciar os preparativos para a viagem – informou Pacheco. – Essa viagem
será muito boa para ti, mana.
–
Eu irei contigo – acrescentou a mãe da jovem – e te farei companhia em todos os
momentos.
– Eu te darei toda a assistência, menina
– disse dr. Sartório –, além de contares com a assistência espiritual de Frei
Gaspar e de Frei Protásio.
O ambiente ficou descontraído, a presença de Anita encheu a todos de alegria. Nesse clima foi servido o jantar, do qual ela também participou. Quando chegou a noite, todos se recolheram a seus aposentos, pois estavam muito cansados e precisavam se preparar para o dia seguinte, quando d. Lurdes seria sepultada e se iniciariam as investigações para esclarecer o bárbaro crime cometido, cujo principal suspeito era sem dúvida o misterioso Firmino Osório Constantino”.
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