Capítulo 6
Depois de jantarem na casa de Isolina, o frade e o
sacristão se recolheram cedo, pois o dia seguinte seria penoso, quando teriam
que viajar 15 a
20 horas em lombo de burro até Lages.
Frei
Gaspar leu primeiramente seu breviário e depois deitou-se e logo dormiu,
cansado que estava das idas e vindas entre o povoado e a fazenda da família
Pacheco.
Já
passava da meia-noite, quando acordou com um ruído estranho que logo
identificou como o badalar do pequeno sino que ficava no alto da torre da
igrejinha. “Mas como – pensou. – Quem
estaria tocando o sino a tal hora da noite? João Custódio não pode ser, porque
a chave da igreja está comigo, aqui na sacristia” .
Preocupado, aguardou uns instantes, mas, como o sino continuava
badalando, vestiu-se rapidamente, acendeu o lampião que estava à sua cabeceira,
abriu a porta da sacristia, passou em frente ao altar, percorreu a nave da
capela até perto da porta principal, dobrou à direita e subiu os degraus da
escada que levavam ao coro que ele, nervoso, percorreu até a extremidade
oposta. A seguir, dirigiu-se à portinhola que dava acesso à torre, enquanto o
sino continuava badalando. Aproximou-se
dela e verificou que estava trancada por fora com uma tranca de madeira.
Retirou a tranca e penetrou no recinto, tomado pela escuridão e assistiu
espantado a uma cena insólita. Levantando mais o lampião, verificou que o sino
badalava sem que ninguém aparentemente lhe puxasse a corda, que balançava a
esmo. Repentinamente, o sino parou de tocar. Frei Gaspar recuou, fechou a
portinhola, colocou a tranca no lugar e voltou-se em direção à escada para
retornar à nave da igreja. No momento em que pisava o primeiro degrau da
escada, o sino voltou a tocar. O frade fez meia-volta e caminhou novamente em
direção à torre. Pegou o crucifixo que trazia preso ao grande terço usado pelos
franciscanos, pendurado ao cordão que lhes circunda a cintura. Ergueu-o em
direção à portinhola e bradou:
–
Em nome de Jesus, força do mal ou quem quer que sejas, que profanas a casa
de Deus, retira-te deste recinto sagrado. Eu ordeno: retira-te!
Mas
o sino continuava a badalar.
Frei Gaspar, agora, muito assustado, voltou a bradar:
–
Vade retro! Vade retro, Satana! Em nome de Deus e da Virgem Maria, eu te
ordeno mais uma vez: retira-te da casa de Deus! Mergulha no fogo do inferno, de
onde vieste...
Neste
instante, a portinhola abriu-se abruptamente, com uma lufada de vento muito
forte que apagou o lampião e algo como uma mão invisível arrancou o terço das
vestes do frade, cujas contas se espalharam pelo chão. Frei Gaspar ficou
somente com a cruz na mão direita, que segurava com firmeza. E, subitamente, o
sino parou de tocar.
O
frade ficou ali petrificado, na mesma posição, quando foi despertado por
batidas na porta da igreja e vozes que o chamavam pelo nome. Desceu, tateando
os degraus da escada, foi em direção à porta, abrindo-a. Deparou-se, então, com
muitas pessoas lideradas por João Custódio. A população do povoado acorrera
assustada até a igreja, ao ouvir as badaladas do sino.
–
O que aconteceu, Frei Gaspar? – perguntou João Custódio.
–
Não sei o que aconteceu. Quando ouvi o sino tocar fui até lá, mas fui agredido
por uma força invisível. Tive o meu terço arrebentado. As contas estão lá em
cima, no assoalho do coro. Acho que fui atacado por uma força maligna.
–
Vamos verificar – falou o sacristão – , enquanto entrava na igreja acompanhado
por algumas pessoas, munidas de lampiões.
O grupo se dirigiu à escada, com o padre
e o sacristão à frente. Subiram até o coro, aproximaram-se da torre. Pelo chão
foram encontrando as contas do terço. Chegaram até a portinhola
que dava acesso à torre e, para espanto geral, a mesma
estava fechada por fora, com a tranca,
como Frei Gaspar a deixara, em
sua primeira inspeção. O sacristão retirou a tranca e entrou na torre, com
outras pessoas, munidas de seus lampiões. Vasculharam o local, agora bem
iluminado, mas nada foi encontrado.
–
Não entendo – disse João Custódio – como alguém de carne e osso poderia ter
entrado na torre com a portinhola fechada pelo lado de fora. Não foi assim que
o senhor a encontrou na primeira vez que subiu até aqui, Frei Gaspar?
–
Sim, como também tenho certeza que a deixei com a tranca, depois que saí da
torre.
Enquanto
ele falava, as pessoas presentes se entreolhavam espantadas. Um velho morador
do lugar, seu Ambrósio, resumiu o que todos pensavam:
–
Seu padre, eu lhe digo é que tem que dar um banho de água benta neste lugar,
fazer uma reza muito forte, pois aqui tem coisa ruim. E não é coisa deste
mundo, mas do outro.
–
É isso mesmo! – confirmaram os outros, em uníssono.
–
Frei – acrescentou João –, desde que o sr. saiu daqui para aquela fazenda,
quanta coisa esquisita tem acontecido. Acho bom o sr. tomar muito cuidado.
–
Se é força do mal, nada devo temer, João, pois Deus é a minha força e o “Demônio,
a Besta que tenta nos enganar, já foi
lançado no lago de fogo e enxofre, onde de dia e de noite é atormentado para
todo o sempre”, como está no Livro do Apocalipse. A oração pode tudo, meus
irmãos. Convido todos os presentes a rezarem comigo um “Creio em Deus Padre ”, um “Padre
Nosso” e uma “Ave Maria”. Depois, podem se retirar tranquilos para suas casas,
porque Deus está conosco.
O
frade iniciou a reza e foi
acompanhado por todos, muito contritos. A seguir, retornaram
até a porta da igreja. João Custódio perguntou:
–
Quer que eu durma aqui na igreja, Frei Gaspar?
–
Não precisa, João, pois tenho Deus em
minha companhia e nada me acontecerá.
Louvado seja Jesus Cristo e boa noite para todos.
As pessoas se retiraram da igreja,
enquanto conversavam. A opinião geral é
que naquilo tudo tinha o dedo de alguém. Todos sabiam da visita que o frade
fizera à fazenda da família Pacheco e o que acontecera por lá, pois a “doença”
de Anita já tinha varado fronteiras. Em toda a região, as pessoas haviam tomado
conhecimento
dos fatos estranhos que se sucediam na Fazenda Santa Bárbara. Estavam convictas
que uma guerra havia começado. De um lado, ele, cujo nome evitavam pronunciar,
e do outro, o frade que tinha causado muito boa impressão a todos, pela
bondade, pela humildade e pela fé que demonstrava nas diversas situações.
Frei
Gaspar retirou-se para a sacristia e preparou-se para dormir, pois em breve
nasceria o dia, mas, por precaução, deixou o lampião aceso, numa mesinha, à
cabeceira da cama.
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