"Por esses tempos um fato perturbador veio tirar um pouco a tranquilidade do lugar. A família Babi era nossa vizinha. O dono da casa era Miguel Babi. Ele mantinha um cartório na sala principal da residência. Sua mulher era muito amiga de minha mãe. Eles tinham três filhos: duas moças e um rapaz. Uma das filhas do casal, chamada Anita, era uma jovem alta e bonita, mas um tanto retraída. Tinha apenas 21 anos de idade quando começou a manifestar um comportamento muito estranho. Tinha momentos de crises, quando era acometida por violentas manifestações de agressividade. Quebrava tudo a seu alcance e era preciso várias pessoas para segurá-la e colocá-la sobre o leito. Entrava em transe e dizia coisas incompreensíveis. Diversas pessoas do lugar acorreram à casa de Miguel para lhe dar apoio, entre elas, meu pai. As crises chegavam à noite e todos ficavam à volta da jovem para ajudar a família naquele momento crítico, pois os problemas eram inúmeros. Anita começou a revelar intimidades dos presentes. Falava de coisas que ela não tinha como saber.
Dr.
De Negri examinou-a por diversas vezes, mas não encontrou nada que fosse a
causa desses distúrbios. Começaram, então, a pipocar os boatos. Dizia-se, a
boca pequena, que a moça estava possuída pelo Coisa Ruim, mas a família chegou
a outra conclusão: achavam que ela estava possuída, sim, mas pelo espírito de
Frei Rogério, um espírito do bem.
Mas
quem era Frei Rogério? Era um frade alemão, como já falei, que tinha fama de
santidade. Ele percorrera o interior de Santa Catarina durante muitos anos,
pregando o evangelho, atendendo os doentes, exorcizando demônios. Até hoje é
venerado como santo e em Lages existia mesmo uma capela erguida em sua
homenagem. Frei Rogério Neuhaus (era esse o seu nome completo) morreu no Rio de
Janeiro, vítima de um câncer no intestino. Minha mãe era devota do frade e, em
sua homenagem, batizou seu quarto filho com o nome de Rogério.
Todos
os dias eu ouvia meu pai falar com minha mãe das peripécias da jovem Anita
e passei a ter muito medo e evitava até mesmo passar perto da casa dos Babi.
Certo dia, entretanto, minha mãe mandou
que eu fosse
até a venda de Silvério
fazer umas compras. Eu desci correndo pelo campo, situado atrás da casa,
todo cercado de taipas, formadas por grandes pedras, muito comuns na região.
Num determinado trecho tinham tirado umas pedras ao rés do
chão, dando passagem para a estrada, que levava até a venda. Era um buraco muito
estreito por onde somente um menino podia passar. Eu enfiei a cabeça na
abertura e já ia atravessá-la, quando me deparei com uma jovem toda vestida de
branco e um lenço na cabeça, parada bem no meio da estrada, a uns três metros
da cerca. Era Anita, muito pálida, com o olhar perdido ao longe. Ela nem se deu
conta da minha presença. Por alguns instantes fiquei paralisado. Não sabia se
avançava ou recuava, mas o senso do dever falou mais alto, pois minha mãe
esperava as compras para fazer o almoço. Tomei coragem, ergui-me de um salto e
saí correndo a uma velocidade além de minhas forças. Só quando estava a uma
distância bem segura, parei e olhei para trás. Lá permanecia a bela Anita, em
seu vestido branco, perdida em seus pensamentos, destacando-se na paisagem
verde daquela manhã cheia de sol.
Quando
retornei com as compras, tomei outro caminho, mas a imagem da jovem ficou
gravada para sempre em minha memória. Ao chegar em casa, relatei o fato à minha
mãe e ela ficou preocupada com o descuido da família ao deixar a jovem andar
sozinha pelos caminhos ermos do povoado. E concluiu:
–
Deus não vai permitir que aconteça alguma coisa ruim à pobre Anita, pois ela
está muito doente, meu filho.
– É mãe – respondi –, mas a sra. não sabe o susto que levei. Quando ia pisar na estrada, lá estava ela olhando pras nuvens. Eu não fiquei com medo dela, mas do Tinhoso...
– Isso é bobagem!
– Bobagem...mas a sra. não imagina quanto medo eu senti. Ele botou sebo
nas minhas canelas. Corri feito um cavalo desembestado. Nunca
imaginei ser capaz de correr
daquele jeito. Quando cheguei na venda do seu Silvério, meu coração queria sair
pela boca. Foi uma coisa terrível e espero que não
aconteça de novo.
Com o passar do tempo, as crises de Anita desapareceram e a família voltou a ter a merecida tranquilidade, pois, como dizia meu pai: “Não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe”.
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