sábado, 11 de setembro de 2021

MANIFESTAÇÕES DO ALÉM QUE PERTURBAVAM A CABEÇA DE UM POBRE MENINO



Capítulo extraído do livro MENINO TROPEIRO, de autoria de R.H. Souza, autor deste blog.

"Por esses tempos um  fato  perturbador  veio  tirar  um   pouco a  tranquilidade do lugar. A família Babi era nossa vizinha. O dono da casa era Miguel Babi. Ele mantinha um cartório na sala principal da residência. Sua mulher era muito amiga de minha mãe. Eles tinham três filhos: duas moças e um rapaz. Uma das filhas do casal, chamada Anita, era uma jovem alta e bonita, mas um tanto retraída. Tinha apenas 21 anos de idade quando começou a manifestar um comportamento muito estranho. Tinha momentos de crises, quando era acometida por violentas manifestações de agressividade. Quebrava tudo a seu alcance e era preciso várias pessoas para segurá-la e colocá-la sobre o leito. Entrava em transe e dizia coisas  incompreensíveis. Diversas  pessoas  do lugar acorreram à casa de Miguel para lhe dar apoio, entre elas, meu pai. As crises chegavam à noite e todos ficavam à volta da jovem para ajudar a família naquele momento crítico, pois os problemas eram inúmeros. Anita começou a revelar intimidades dos presentes. Falava de coisas que ela não tinha como saber.

Dr. De Negri examinou-a por diversas vezes, mas não encontrou nada que fosse a causa desses distúrbios. Começaram, então, a pipocar os boatos. Dizia-se, a boca pequena, que a moça estava possuída pelo Coisa Ruim, mas a família chegou a outra conclusão: achavam que ela estava possuída, sim, mas pelo espírito de Frei Rogério, um espírito do bem.

Mas quem era Frei Rogério? Era um frade alemão, como já falei, que tinha fama de santidade. Ele percorrera o interior de Santa Catarina durante muitos anos, pregando o evangelho, atendendo os doentes, exorcizando demônios. Até hoje é venerado como santo e em Lages existia mesmo uma capela erguida em sua homenagem. Frei Rogério Neuhaus (era esse o seu nome completo) morreu no Rio de Janeiro, vítima de um câncer no intestino. Minha mãe era devota do frade e, em sua homenagem, batizou seu quarto filho com o nome de Rogério.

Todos os dias eu ouvia meu pai falar com minha mãe das peripécias da jovem Anita e passei a ter muito medo e evitava até mesmo passar perto da casa dos Babi. Certo dia, entretanto, minha mãe mandou  que  eu  fosse  até a  venda  de Silvério  fazer umas compras. Eu desci correndo pelo campo, situado atrás da casa, todo cercado de taipas, formadas por grandes pedras, muito comuns na região. Num determinado trecho tinham tirado umas pedras ao rés  do  chão, dando passagem para a estrada, que levava até a venda. Era um buraco muito  estreito por onde somente um menino podia passar. Eu enfiei a cabeça na abertura e já ia atravessá-la, quando me deparei com uma jovem toda vestida de branco e um lenço na cabeça, parada bem no meio da estrada, a uns três metros da cerca. Era Anita, muito pálida, com o olhar perdido ao longe. Ela nem se deu conta da minha presença. Por alguns instantes fiquei paralisado. Não sabia se avançava ou recuava, mas o senso do dever falou mais alto, pois minha mãe esperava as compras para fazer o almoço. Tomei coragem, ergui-me de um salto e saí correndo a uma velocidade além de minhas forças. Só quando estava a uma distância bem segura, parei e olhei para trás. Lá permanecia a bela Anita, em seu vestido branco, perdida em seus pensamentos, destacando-se na paisagem verde daquela manhã cheia de sol.

         Quando retornei com as compras, tomei outro caminho, mas a imagem da jovem ficou gravada para sempre em minha memória. Ao chegar em casa, relatei o fato à minha mãe e ela ficou preocupada com o descuido da família ao deixar a jovem andar sozinha pelos caminhos ermos do povoado. E concluiu:

– Deus não vai permitir que aconteça alguma coisa ruim à pobre Anita, pois ela está muito doente, meu filho.

– É mãe – respondi –, mas a sra. não sabe o susto que levei. Quando ia pisar na estrada, lá estava ela olhando pras nuvens. Eu não fiquei com medo dela, mas do Tinhoso...                  

–  Isso é bobagem!

–  Bobagem...mas a sra. não  imagina quanto medo eu senti. Ele botou sebo nas minhas canelas. Corri feito um cavalo desembestado.  Nunca  imaginei ser capaz  de correr daquele jeito. Quando cheguei na venda do seu Silvério, meu coração queria sair pela boca. Foi uma coisa terrível e espero que não aconteça de novo.

Com o passar do tempo, as crises de Anita desapareceram e a família voltou a ter a merecida tranquilidade, pois, como dizia meu pai: “Não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe”.


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