"As semanas e os meses se passaram, enquanto Anita tinha
que suportar uma gravidez muito difícil. O ser que
carregava em seu corpo, sugava- lhe todas as energias.
Sofria de enjoo, estava muito fraca e anêmica, mas o pior
era a depressão de que fora tomada. Ela não sabia o que
estava para acontecer, não sabia como seria o filho que
carregava no ventre. Aqueles pesadelos voltaram, durante
os quais ela sentia a presença de Firmino Constantino.
Sentia mesmo o tilintar de suas esporas no assoalho do
quarto. E não lhe saia da cabeça aquela frase do livro
vermelho lido por Nefasta: “ ... o dragão parou diante da
mulher que havia de dar a luz, para que dando a luz, lhe entregasse
o filho”.
Dr. Cláudio comparecia com frequência à fazenda
para lhe dar assistência. Quando esteve em Lages para
compra de remédios, o médico procurou o consultório do
amigo dr. Sartório e lhe contou em detalhes o que se
passava com Anita.
– Bem, caro colega – disse dr. Sartório –, quem
poderia nos dar uma ajuda neste momento seria Frei
Gaspar, mas ele, infelizmente, não está mais entre nós. A
última vez que estive com Frei Protásio, fui informado
que o nosso bom amigo esteve em tratamento num
grande hospital do Rio de Janeiro. Os médicos da capital
também não puderam fazer nada por ele, assim como nós
não podemos fazer nada pela nossa jovem Anita. O
problema dela chegou às fronteiras da ciência e ninguém sabe o que se encontra do outro lado. É lamentável, mas
essa é a verdade.
– Sua gravidez é muito difícil.
– E o colega acha que foi esse Firmino Constantino
quem a engravidou?
– É possível, pois ela passou vários dias na fazenda
sob efeito de chás à base de ervas e, certamente, não
estava na plenitude de suas faculdades mentais.
– Eu nunca ouvi falar que o Diabo tenha engravidado alguma mulher.
– Como o sr. disse, Anita está naquela fronteira da
ciência, além da qual muito pouco se sabe. E para
complicar, o amigo também não acredita no Diabo.
– Isso é verdade.
Dr. Cláudio se despediu do colega e retornou a
Anita Garibaldi. Quando chegou ao povoado, encontrou
Sebastião, empregado da fazenda Santa Bárbara, muito
nervoso, à sua espera, pois, ao que parecia, Anita entrara
em trabalho de parto.
– Preciso de um cavalo descansado – disse o
médico.
– Trouxe um excelente cavalo para o senhor –
respondeu Sebastião.
A distância até a fazenda foi percorrida a galope,
pelos dois cavaleiros. Pacheco já os esperava, nervoso, na
porteira da fazenda.
– Graças a Deus que chegou, dr. Cláudio. Minha
irmã passa muito mal e creio que a criança nascerá a
qualquer momento.
– Vamos ver, meu amigo. Preciso de um local para
me instalar e arrumar o material. Mandem ferver água,
tragam toalhas bem limpas, Num minuto estarei a postos.
O médico se preparou no aposento contíguo ao de
Anita e depois entrou no quarto, onde a jovem se
contorcia nas contrações do parto, assistida por d.
Madalena e uma criada. Dr. Cláudio pediu a Pacheco que
ele e sua mãe se retirassem do local, pois o nervosismo de
ambos seria contagioso e deixaria Anita ainda mais
agitada. Pediu que só a criada ficasse ali para ajudá-lo.
Pacheco ficou com a mãe, em silêncio, na sala da
fazenda, durante um longo tempo, enquanto ouviam os
gritos desesperados de Anita e a voz do médico que
mandava ela fazer força, força e mais força. De repente,
houve um silêncio e, a seguir, um choro de criança. Todos
respiraram aliviados. Passaram-se alguns minutos e dr
Cláudio, muito sorridente, surgiu na porta do quarto e
informou:
– Podem entrar que nasceu o filho de Anita. É um
menino bem forte, bonito e saudável.
Aquela notícia que deveria dar um ponto final a
todas as apreensões da família, foi início de novas
perturbações. Quando o médico acabou de falar, a casa
foi invadida por um vento forte e gelado, coisa impossível
de acontecer em pleno verão, pois era o final do mês de
fevereiro. Lá fora já era noite e os cães da fazenda
começaram a uivar, os cavalos se agitavam nervosos e
relinchavam nas cocheiras. Alguns peões estavam no
curral assistindo uma vaca prestes a dar cria, quando o animal se levantou repentinamente e o bezerro ficou
preso no cordão umbilical. O pequeno animal nasceu
morto, para espanto dos presentes, pois o parto corria
normal. Os cavalos que trouxeram dr. Cláudio e Sebastião estavam amarrados à entrada da fazenda, empinaram
assustados, soltaram as rédeas e fugiram, como que
impelidos por misteriosa energia.
Dias depois ainda se sentiam os efeitos do estranho
fenômeno.
As criadas da fazenda observaram que os ovos
de todas as galinhas que estavam nas chocadeiras, naquele
período, não vingaram. Tinham gorado e nenhum pinto
nasceu.
Quando Pacheco, dona Madalena e o médico
entraram no quarto, Anita descansava aliviada e o menino
jazia no berço, enrolado numa manta, pois o ambiente
ainda estava gelado. Ele mantinha os olhos bem abertos
como se estivesse fixando as pessoas e tinham um brilho
estranho nas pupilas, fato que deixou o médico perturbado, porque nunca observara fenômeno semelhante.
Dirigindo-se a Pacheco e a dona Madalena, falou:
– Acho melhor levar o berço do menino para outro
aposento, para que Anita tenha o repouso mais absoluto, pois ela precisa. Suas energias foram totalmente
exauridas e ela não está em condições de amamentá-lo. É
preciso preparar uma mamadeira.
D. Madalena retirou-se apressada do quarto e foi
para a cozinha da fazenda providenciar leite para a
mamadeira do recém-nascido, enquanto Pacheco e a
criada retiravam do quarto da mãe o berço com o
menino, de acordo com instruções do médico. O berço foi colocado ao lado de uma cama, em outro aposento,
onde as criadas se revezariam durante a noite, pois o
menino certamente precisaria de todos os cuidados e
atenções especiais.
Quando nasce uma criança, geralmente as pessoas
celebram, ficam felizes. Mas isso não acontecia na
Fazenda Santa Bárbara. O ambiente estava pesado,
sombrio, ninguém falava. Pacheco mantinha-se em
silêncio e o médico estava mais preocupado com Anita,
examinando-a com frequência.
Entre os empregados da
fazenda começaram a surgir comentários. Todos perceberam que, no momento do nascimento do menino, coisas
estranhas ocorreram. Foi aquele vento gelado, a inquietação dos animais, a vaca que perdeu o bezerro. Eram
muitas as coincidências.
Um empregado afirmou que viu
uma nuvem de grandes morcegos voando sobre a fazenda
e estava certo de que aquilo significava mau agouro. Uma
preta velha, que tinha premonições, disse com todas as
letras que o menino que nascera era o filho do Diabo.
Falou até de uma profecia que afirmava que ele um dia
viria para viver entre os homens e lhes trazer muitas
desgraças, que nasceria do ventre de uma jovem, assim
como acontecera com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Afirmou que o povo devia rezar muito, se apegar a Deus
e a Virgem Maria para não perecer sob as garras do
Malvado.
A noite já ia alta, quando o médico se recolheu
para descansar um pouco, pois o dia tinha sido pesado.
Viajara de Lages até Anita Garibaldi e dali até a fazenda.
Dona Madalena também dormia, depois de tomar um calmante que o médico lhe deu.
Os empregados da
fazenda já tinham se recolhido. Anita dormia profundamente, mas o recém-nascido permanecia acordado.
Estava muito agitado, mas não chorava. Pacheco e a
criada permaneciam ao lado do berço, quando foram
surpreendidos com os latidos dos cães da fazenda,
ouvindo-se, a seguir, um tropel de muitos cavalos,
seguido de fortes batidas na porta principal da casa,
enquanto os cães ganiam como que atingidos por
alguma força terrível. Pacheco pegou um lampião e foi
em direção à porta, mas antes de abri-la, perguntou:
– Posso saber quem chega?
– Por favor, abra a porta – disse uma voz de
homem, acompanhada do rosnar de um cão. – Abra, que
somos de paz. Mas, se não abrir, arrombaremos, porque
estamos em maioria.
Não restou a Pacheco outra alternativa. Abriu a
porta e deu de cara com um homem alto, vestindo uma
longa capa preta, acompanhado de um grande cão.
Montados em seus cavalos, permaneciam atrás do recém chegado, vários homens portando armas de cano longo.
– Meu nome é Firmino Osório Constantino – disse
o intruso. – Vim buscar meu filho que nasceu hoje.
– Quem garante que é teu filho? – retrucou
Pacheco. – Como podes ter tanta certeza?
– Anita, tua irmã, foi a escolhida para gerar esse
filho. Estava escrito que uma jovem daria à luz a um filho
meu, que realizará muitos prodígios. Infelizmente, ela não
entendeu a grandiosidade da missão que lhe foi reservada.
Enquanto falava, o homem afastou Pacheco para o
lado e entrou sala adentro. O jovem achou que não havia
como resistir e conduziu o intruso até o quarto onde
estava o berço do menino. Firmino aproximou-se e ficou
a observar a criança por algum tempo com um largo
sorriso de felicidade. Depois, disse:
– Filho querido, de há muito eras esperado. Eu te
fiz à minha imagem e semelhança. Irás morar na casa de
teu pai e te sentarás à sua direita e com ele reinarás. Todos
os homens te renderão homenagens.
Enquanto concluía as palavras, ergueu a criança do
berço, agasalhou-a sob a grande capa preta e se dirigiu
para a porta de saída da casa, sempre acompanhado de
Soldante, que rosnava para Pacheco.
Ao cruzar a sala, Firmino encontrou dr. Cláudio
que acordara com o barulho e saiu do quarto.
– Obrigado, doutor – disse – pelo magnífico
trabalho que realizou. Um dia será recompensado,
regiamente recompensado. E não se esqueça que foi um
privilégio acompanhar o nascimento do filho de Firmino
Osório Constantino.
Aproximou-se do cavalo e montou, sempre com o
menino nos braços. Deu meia volta, esporeou a montaria
e partiu célere, acompanhado da comitiva de vaqueiros.
Pacheco só fechou a porta depois que os vultos
mergulharam nas trevas daquela terrível noite.
– O que realmente aconteceu? – perguntou doutor
Cláudio, ainda estupefato com o que vira e ouvira.
– É ele, doutor, o Firmino Constantino. Disse que o
filho é dele e veio buscá-lo. Não pude fazer nada, porque
trouxe consigo o cão feroz e lá fora estavam uns dez
homens armados com armas pesadas. Foi sorte os empregados da fazenda não terem percebido, porque, certamente,
teríamos um tiroteio feio, com muita gente ferida e até
morta. Como iremos contar a Anita o ocorrido?
- Não
será uma tarefa fácil, podes crer.
– Conto com sua diplomacia para essa tarefa,
doutor. É melhor o senhor falar, com sua experiência de
médico. Eu acho que não conseguirei.
– Está certo! Amanhã, logo cedo, quando ela
acordar, irei lhe falar. O amigo pode dormir tranquilo a
esse respeito.
Como não havia nada mais a fazer, os dois homens
se recolheram e o mesmo fez a criada que estava no
quarto de plantão. Logo que o dia clareou, Pacheco
procurou Sebastião, peão da fazenda, e lhe deu uma
missão.
– Quero que vás até a fazenda do Delegado
Otacílio Brito e peças que ele venha até aqui, pois tenho
uma investigação para ele fazer. Diga-lhe que uma criança
foi sequestrada, o filho de Anita...
– O filho de dona Anita foi sequestrado, seu Pacheco?
Quando isso aconteceu?
– Foi ontem à noite, Sebastião, mas depois saberás os
detalhes. E não quero que fales disso com ninguém, somente
com o Delegado Otacílio.
– O patrão fique tranquilo, que nada falarei. Só vou
tomar um café e logo estarei na estrada.
Pacheco retornou à casa da fazenda e encontrou
dr. Cláudio no quarto de Anita. Ele informava à jovem
que, durante a noite, seu filho fora sequestrado por
Firmino Constantino. Para surpresa de todos, a reação de
Anita foi tranquila. Parecia até aliviada, quando falou:
– Esta noite tive outro sonho. Frei Gaspar
apareceu e me avisou que Firmino viria buscar o menino.
Falou também que ele, Firmino, me violentara enquanto
eu estava na Toca do Diabo e que todas as noites eu era
dopada por Nefasta, quando tomava aquele chá para
dormir e nesse estado ele dispunha de meu corpo, com a
ajuda e a complacência da governanta, também um espírito impuro. E me disse que a concepção se deu naquela
noite de orgias, organizada por ele para celebrar seu
aniversário, quando me ofereceram vinho e eu tive
alucinações. Acrescentou que era melhor que o Malvado
levasse o menino, porque muita coisa ruim poderia
acontecer a todos nós, se ele aqui ficasse. Disse também
que eu não me preocupasse, porque meu espírito e meu
corpo agora estavam livres e que jamais ele voltaria para
me atormentar. E completou que só a Cruz de Cristo e o
fogo purificador poderão livrar o mundo de Firmino
Constantino.
– Anita – disse Pacheco –, mandei o Sebastião atrás
do Delegado Otacílio Brito, pois iremos reunir um grupo
de homens para desentocarmos esse bandido de sua toca.
– Não faças isso, meu irmão, porque ele tem
muitos homens e muita gente irá morrer.
– É preciso fazer, Anita, para darmos um ponto
final em toda essa desgraça. Enquanto estiver vivo,
poderá retornar e prejudicar muitos inocentes.
Diante do
argumento do irmão, Anita se calou. Pediu comida, pois
estava com fome, fato que deixou o médico animado, pois
ela se recuperava a olhos vistos. Dr. Cláudio deixou
recomendações aos familiares quanto ao tratamento da
jovem, despediu-se e retornou a Anita Garibaldi, onde
outros doentes o aguardavam."
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