sábado, 28 de maio de 2011

O CACO E O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA DÉCADA DE CINQUENTA



           A   Faculdade Nacional de Direito cercada pela policia, durante a                                          greve  dos bondes, que tumultuou a cidade do Rio de Janeiro
    • No ano de 1956 ingressei na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, pertencente à antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na Faculdade Nacional de Direito, se destacava naqueles velhos tempos,  a atuação do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) pela sua atuação em defesa dos estudantes, mas também pela sua atuação política.
Para entrar naquela faculdade havia um gargalo, a prova de latim, que eliminava a maioria dos candidatos. Como eu tinha saído recentemente do seminário, mesmo não fazendo o famoso cursinho preparatório, fui aprovado com facilidade. Da prova escrita, constava, geralmente, a tradução de um trecho de um discurso de Cícero e, na prova oral, os examinadores mandavam os candidatos indicarem a que declinação pertenciam determinadas palavras e a conjugarem alguns verbos irregulares. Wandick Londres da Nóbrega era professor de latim do Colégio Pedro II e titular da cadeira de direito romano na Faculdade Nacional de Direito e o responsável pela prova de latim do respectivo vestibular.
Para transporem o grande obstáculo da prova de latim, os cursinhos usavam de todos os expedientes possíveis e impossíveis. Para a prova, o candidato podia levar um dicionário latim/português e, em determinada ocasião, um cursinho dos mais frequentados da cidade (cujo nome não vou aqui declinar), achou uma  solução engenhosa para o problema. Mandou encadernar nos dicionários destinados a seus alunos a tradução de todos os discursos de Cícero. Era uma ideia genial, só que o diretor de um cursinho concorrente soube da maracutaia  e, na hora da prova, aproximou-se da sala onde a mesma se realizava para falar com o professor Wandick que não queria atende-lo, pois estava ocupado com  o início da prova. O denunciante insistiu com o funcionário responsável, dizendo que se tratava de uma grave denúncia. O professor veio atendê-lo e ficou pasmo com a informação. Voltou para a sala e falou:
- Quem de vocês estudou no cursinho X?  
Diversas mãos se levantaram. Então, ele pediu que um dos alunos lhe emprestasse o dicionário de latim e lá estava a tradução dos discursos do grande orador romano, compostos no mesmo tipo e tamanho de letra do dicionário, caprichosamente inseridos entre os verbetes. Pegou outros dicionários e verificou a mesma situação.
- Belo trabalho – falou o professor. Parabéns pela criatividade. Mas já que vocês estão tão bem preparados para a tradução das catilinárias de Cícero, vamos  mudar de autor. A tradução de hoje será de um texto do grande poeta romano – Virgílio. Vocês vão traduzir um pequeno trecho das Geórgicas, sua mais famosa obra. Já devem ter ouvido falar delas.
A solução encontrada pelo professor foi um banho de água fria e o número de reprovações naquela vestibular foi recorde, pois o latim de Virgílio é de difícil tradução.
Naquela época, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil e na Faculdade Nacional de Direito lecionavam vários juristas de renome, como Santiago Dantas, Hermes Lima, Hélio Tornaghi, Hahnemann Guimarães, Oscar Stevenson, Pedro Calmon, Wandick Londres da Nóbrega e  outros. O CACO era o centro acadêmico que desenvolvia atividades em prol dos estudantes. Como Pedro Calmon era o magnífico reitor da Universidade do Brasil e era professor da faculdade, o pessoal do centro acadêmico conseguia com ele as devidas melhorias para o estabelecimento. Só para dar uma ideia, o restaurante, administrado pelo CACO oferecia comida de primeira qualidade – diariamente, almoço e jantar e refeições também aos sábados. Pedro Calmon era muito popular entre os estudantes. Em reuniões nas quais o magnífico reitor participava, era costume os estudantes entoarem uma pequena canção em sua homenagem, cujo texto era o seguinte: "Calmon é bom companheiro/ Calmon é amigo batuta/ Calmon dá o cu por dinheiro/ Calmon é filho da puta."

Mas o CACO também exercia grande atividade política extra muros da faculdade. Os estudantes  se dividiam em ideologias de vários matizes: comunistas, socialistas, democratas, anarquistas e também os oportunistas que deixavam os estudos de lado para se dedicarem exclusivamente às atividades políticas. Para mostrar como eles agiam, vou relatar como foi organizada a famosa greve dos bondes que parou a cidade do Rio de Janeiro por vários dias.
No governo do presidente Juscelino Kubitschek, Francisco  Negrão de Lima ocupou a prefeitura do Distrito Federal de 1956-1958. E foi durante o governo dele que aconteceu um episódio bem característico da época agitada em que vivíamos. Negrão de Lima resolveu aumentar o preço das passagens dos bondes, transporte de  importância fundamental para a população da cidade naqueles tempos, administrado pela Light. A decisão do prefeito foi publicada numa segunda-feira, se bem me lembro, e parecia tudo tranquilo até que, na tarde do dia seguinte, os estudantes da Faculdade Nacional de Direito iniciaram um movimento, minuciosamente planejado  para derrubar a medida do prefeito.
As coisas começaram assim: na parte da tarde daquele dia, um grupo de estudantes se reuniu no chamado Largo do CACO, em frente à faculdade. Colocaram uma mesa sobre os trilhos do bonde que por ali passava, rumo à Central do Brasil. Trouxeram um tabuleiro de xadrez e iniciaram uma partida. Dali a instantes, chegou o primeiro bonde e o motorneiro desceu para desocupar os trilhos, mas, nesse instante, um pedaço de pau atingiu os vidros da frente do bonde e todos os passageiros, mais o motorneiro e o cobrador fugiram assustados. Era o início do bloqueio. Um a um foram chegando outros bondes que também ficaram parados, com isso paralisando  todo o sistema que era interligado. Uma hora depois, nenhum bonde mais circulava na cidade e, no final do dia,  uma multidão de pessoas se dirigia a pé para casa, congestionando a Central do Brasil e os pontos de ônibus,  ocasionando um monstruoso engarrafamento de carros, ônibus, bondes que atingiu toda a cidade.
No início da noite, entraram em ação as lideranças  do CACO que faziam discursos em vários pontos em torno da Praça da República, incitando a população contra o aumento dos bondes. Estudantes de outros estabelecimentos de ensino aderiram ao movimento e o caos tomou conta da capital da república. Durante as manifestações, muitos estudantes foram espancados e presos pela polícia. O pessoal do CACO levava bandeiras do Brasil e, ao serem agredidos pela polícia, enrolavam seus corpos com o pavilhão nacional, o que não impedia que os cassetetes dos militares os atingissem, com bandeira e tudo.
 A cavalaria da polícia militar (foto) cercou o prédio da faculdade de direito, onde os estudantes se entrincheiraram. As portas foram fechadas e protegidas com barricadas. Foi, então, que um tenente da referida cavalaria  resolveu sacar o revólver e atirar contra o vidro da porta principal do prédio. O que fizeram, então, os revoltosos? Foram para o último andar do edifício de onde lançaram pesadas carteiras sobre os policiais mandando muitos deles para o hospital. O episódio do cerco à faculdade foi assunto de uma reunião solene, dias depois, quando foi inaugurada no saguão de entrada da estabelecimento,  uma placa com  dizeres  de repúdio ao atentado. Se bem lembro, Pedro Calmon, o reitor da Universidade do Brasil, esteve presente á solenidade. Essa placa deve estar lá até hoje.

Diante da gravidade dos fatos, o governo apelou para o exército que acampou no Campo de Santana, próximo à faculdade e, em poucas horas, as coisas voltaram ao normal e o aumento dos bondes continuou em vigor.
Durante os governos militares, o CACO teve sua diretoria cassada por mais de uma vez com a suspensão de suas atividades.
Os tempos eram outros, mas o movimento estudantil  era impregnado de ideais que iam bem além dos bancos escolares. Se estavam certos ou errados, só a história poderá julgá-los.

sábado, 14 de maio de 2011

O HUMORISTA CARLOS ESTÊVÃO


                                            Ficheiro:Carlos Estêvão.jpg

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, no ano de 1956, entre minhas várias atividades, fui contratado como redator de uma revista social, a Rio Magazine de propriedade de Alfredo Thomé, casado com Jacira Thomé, mãe de Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo.
.
A equipe da Rio Magazine era formada pelo diretor, Alfredo Thomé, uma secretária, um redator, dois auxiliares e por Carlos Estêvão que era o diagramador da revista. Vários colaboradores escreviam para a revista, entre eles, os conhecidos colunistas sociais, Ibrahim Sued e Jeff Thomas. Garcia, era um senhor espanhol, encarregado da publicidade da revista.

Carlos Estêvão trabalhava para a revista o Cruzeiro onde tinha uma página de humor e fazia uma charge diária para o Jornal,O dr. Macarra. Quando o humorista Péricles morreu, passou a fazer o Amigo da Onça, também para O Cruzeiro. Ele centralizava suas atividades no escritório da revista Rio Magazine que ficava no centro da cidade, na Rua Senador Dantas, e ali fazia todos os seus trabalhos. Era um trabalhador incansável.

Carlos Estêvão era um exímio desenhista e criava piadas geniais. Um dia, publicou na revista O Cruzeiro uma charge em que um homem grandão desfilava pela rua com o corpo todo formado por letras. Outro boneco observa-o espantado e exclama: finalmente, conheci um homem de letras. O autor da charge recebeu um telegrama de congratulações da Academia Brasileira de Letras.

Um dia, Alfredo Thomé falava ao telefone e, em certo momento disse para o interlocutor: estou aqui na minha tenda árabe de trabalho. Carlos Estêvão ouviu a frase, correu para a prancheta e, em poucos segundos, desenhou uma tenda no deserto com um camelo na entrada e, dentro da tenda o desenho de Alfredo Thomé vestido de beduíno, fumando o tradicional cachimbo árabe, o narguilé, do qual tirava baforadas. Quando Thomé acabou de falar ao telefone, ele colocou o desenho em sua mesa e falou: eis a sua tenda árabe de trabalho.

Em certa ocasião, apareceu num jornal a foto de Juscelino com a testa franzida e um olhar inexpressivo, lembrando a figura de O Magro, do cinema. Estêvão recortou a foto, desenhou na cabeça aquele chapéu característico do comediante, colocou ao lado uma foto do Gordo e passou a mostrar a montagem para as pessoas, perguntando quem eram os personagens. Todo mundo dizia: ora, são o Gordo e o Magro. Ele falava: observem bem e quando identificavam a foto de Juscelino, caiam na gargalhada.

Um dia, o colunista Jeff Thomas apareceu na redação com sua coluna mensal, só que trouxe o texto manuscrito com uma letra às vezes indecifrável. Pediu à secretária Helena para datilografá-lo, pois não tivera tempo. Helena encontrou dificuldade para decifrar os garranchos do colunista e pediu socorro a Carlos Estevão que passou a ditar o texto para a secretária. Em determinado trecho o colunista falava que Israel Klabin, figura importante da alta sociedade carioca, tinha oferecido um party (festa) em sua residência para comemorar seu aniversário. Carlos Estêvão não entendeu bem a palavra ou quis pregar uma peça ao colunista e ditou, mais ou menos nestes termos: para comemorar seu aniversário, Israel Klabin ofereceu ao high society carioca, em sua residência, um porre monumental. Quando saiu a publicação, Alfredo Thomé teve que enfrentar a ira de Israel Klabin. Pediu mil desculpas e disse que na edição seguinte iria corrigir o erro, evitando assim um rumoroso processo. Quando Jeff Thomas veio à redação com sua nova coluna, foi literalmente escorraçado pelo irado editor e nunca mais escreveu para a revista. E os dois jamais descobriram que o autor da façanha tinha sido o Carlos Estêvão.

O humorista também gostava de pregar peças àquelas pessoas com quem tinha alguma diferença. Mantinha discussões acaloradas com o espanhol Garcia sobre vários assuntos e, em certa ocasião, foi à desforra, telefonando de fora do escritório (disfarçando a voz), para solicitar a presença do corretor de publicidade da revista em determinado endereço na zona sul do Rio de Janeiro, para negociar a compra de algumas páginas de publicidade na Rio Magazine. Lá foi eufórico o nosso Garcia e no endereço indicado ninguém sabia de nada. Ele voltou desolado para a redação, enquanto Estêvão, às escondidas, dava gargalhadas.

Carlos Estêvão era uma pessoa alegre e expansiva e tudo para ele era motivo de piada. Um dia, saímos do escritório, no final do expediente, quando caiu uma chuva muito forte com muitos raios e trovões. Tentamos nos proteger num abrigo para ônibus que existia no Largo da Carioca, mas não tinha lugar para mais ninguém.
- Espere aí que vou arrumar lugar para nos abrigarmos – disse-me.
Então, se colocou em frente ao abrigo, ergueu os braços para o alto e clamou: raios, caiam sobre mim e me mandem para o inferno, pois sou um grande pecador.  Algumas pessoas riram, mas outras, temerosas, se afastaram, abrindo, espaço para nos abrigarmos.

Em outra oportunidade, caminhávamos, ele e eu, pela rua Evaristo da Veiga, onde tinha um quartel da PM. Ele parou bem em frente ao soldado que estava de sentinela, olhou para mim e disse:
- Sabe por que esses caras usam esse capacete em forma de penico?
- Nem imagino.
- Ora – respondeu-, porque só têm merda na cabeça.

Também criou para a Revista O Cruzeiro a charge do deputado nepotista, cuja família era muito grande e todos estavam atrás de emprego público. O dito deputado, não suportando mais a pressão familiar, tomou uma decisão: apresentou no congresso nacional um projeto de criação do Ministério de Combate ao Empreguismo. Ao saber do fato, a família protestou com veemência, pois eles ainda tinham muitos candidatos a cargos públicos. Resposta do deputado:
- Ora, o novo ministério vai precisar de muitos servidores e, se aprovado, vou colocar todos vocês lá dentro. Podem ficar tranquilos. Sei o que estou fazendo.

Carlos Estêvão (1921-1972), natural de Pernambuco, era casado com Neuza, também daquele estado, com quem teve três filhos. Quando se separaram, casou com Helena, a secretária da revista Rio Magazine. O casal teve uma filha. Mudou-se para Belo Horizonte de onde mandava suas colaborações para a revista O Cruzeiro e para outras publicações. Faleceu na capital mineira em 14 de julho de 1972, com apenas 51 anos de idade, deixando um dos maiores acervos da caricatura brasileira. Seu humor é o retrato de uma época.























------------------------------------------------------------------------------------------------------------