quarta-feira, 28 de julho de 2021

ELES NÃO TINHAM TRATOR NEM MÁQUINA AGRÍCOLA, MAS CONTAVAM COM O PIXIRUM



Era a década de trinta, quando os agricultores do sul do Brasil sofriam no trabalho da terra. Eles dependiam das foices e das enxadas em suas tarefas no campo. Não dispunham de adubos, inseticidas, nem assistência técnica, E havia um costume curioso, que demonstrava o senso corporativista da população. Era o pixirum, como eles diziam ou mutirão. Mas será que era um costume saudável? É isso que vamos ver, lendo, a seguir, um trecho do livro Menino Tropeiro, de autoria de R.H. Souza, autor deste blog.

"A pequena estrada que passava em frente ao sítio levava a um lugar chamado Freguesia dos Domingos, mais conhecida pelo povo como Freguesia dos Papudos, pois a maioria dos habitantes do lugar sofria de bócio, um aumento do volume da glândula tireoide. Para meu pai, a causa dessa anomalia devia ser a água do lugar, causadora de tal deformidade nas pessoas. Algumas tinham um papo tão grande que chegavam a andar com a cabeça inclinada para o lado do pescoço, onde se localizava o bócio.

Um dia de manhã, eu estava em frente à casa, olhando a paisagem, quando percebi uma fileira de homens se deslocando silenciosamente em direção a Anita Garibaldi. Todos eles  apresentavam  ferimentos diversos, na cabeça, nos braços, nas pernas. Tinham as roupas sujas de sangue. Meu pai se aproximou e perguntou ao último homem da fila o que tinha acontecido e ele fez um relato sucinto:

– Foi briga de pixirum – disse o homem. – Meu compadre José Inácio chamou esse povo pra fazer um roçado na terra dele. No final, deu comida com muita pinga pra todo mundo e tá aí o resultado: foi briga de foice, seu moço.

– E para onde vão, agora?

– Vamos procurar o doutor lá em Anita pra tratar da gente, pois tem homem aí que perdeu muito sangue.

O pixirum, em linguagem cabocla, era um mutirão realizado com frequência na região, quando alguém reunia amigos e conhecidos para a realização de uma tarefa em sua propriedade, como roçado, plantio, colheita, tarefa para muitos braços. No final, o organizador do pixirum oferecia aos participantes um almoço, regado a cachaça, que, geralmente, terminava em briga. E foi isso o que aconteceu com aquela gente."



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sábado, 17 de julho de 2021

AUTA DE SOUZA, UMA POETISA NORDESTINA DE GRANDE SENSIBILIDADE ESPIRITUAL




No ano de 1951, eu estudava no Seminário Santo Antônio, dos padres franciscanos, situado na cidade de Agudos, São Paulo. No seminário, tínhamos uma academia literária, com reuniões semanais, na qual se faziam discursos e celebrações de caráter literário. Naquele ano, por sugestão do diretor, Frei Vito, realizamos uma sessão especial, por ocasião do cinquentenário de morte da poetisa nordestina, Auta de Souza, famosa no meio literário pela sua elevada sensibilidade e delicadeza de sua obra literária. Durante a sessão, houve palestra sobre a biografia da homenageada e récitas de diversos poemas de sua autoria. 

A seguir,  um resumo biográfico de Auta de Souza,  publicado pela Sociedade de Divulgação Espírita, pois, além de católicos e o mundo literário, ela é admirada também pelos espíritas, pois o famoso medium Chico Xavier psicografou poemas de autoria da jovem desencarnada.

 "Auta de Souza nasceu no Estado do Rio Grande do Norte, na pequena cidade de Macaíba, em 12 de Setembro de 1876. Quarto filho do casal Elói Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina Rodrigues de Souza, Auta teve como irmãos mais velhos Henrique Castriciano, Irineu e o Júnior, e, como caçula, o João Câncio.

Desde a infância Auta estudou, segundo Clóvis Tavares, ” As grandes lições do sofrimento humano”. Sua mãe desencarnou antes que a ” cotovia mística das rimas” completasse três anos de idade; o pai seguiu a companheira em 1881, quando Auta tinha, portanto, cinco anos. Os avós maternos de Auta recolhem-na e aos irmãozinhos, levando-os para Recife, para o ” Velho sobrado do Arraial”. A perda dos pais foi, em parte, suprida pela dedicação da avozinha Dindinha – D. Silvina de Paula Rodrigues.

Aos sete anos já sabia ler e escrever, graças a um professor amigo e aos oito anos de idade “lia para as crianças pobres, para humildes mulheres do povo ou velhos escravos as páginas simples e ingênuas da História de Carlos Magno”

O triste desencarne do irmão

Na inesquecível noite de 15 de fevereiro de 1887 – Auta tinha dez anos – outra tragédia vem trazer nova e dura provação à “mais espiritual das poetisas brasileiras”: o mano Irineu, o companheiro de todas as horas, é envolvido pelas chamas de uma lamparina de querosene, que explodiu. O menino resistiu ainda dezoito horas, mas foi, finalmente, juntar-se aos pais, no Além.

Essa sucessão de golpes dolorosos marcou profundamente sua alma sensível de mulher, caracterizada por uma pureza cristalina, uma fé ardente e um profundo sentimento de compaixão pelos humildes, cuja miséria tanto a comovia.

O sofrimento veio burilar a sua inata sensibilidade, que transbordou em versos comovidos e ternos, ora ardentes, ora tristes, lavrados à sombra da enfermidade, no cenário desolador do sertão de sua terra. Aos doze anos inicia seus estudos oficiais, no Colégio São Vicente de Paulo. Aí aprende o idioma francês, o que lhe permite ler os mestres da literatura francesa no original. Durante dois anos, estuda, recita, verseja, ajuda as irmãs do colégio, e, principalmente, aprimora sua fé, na leitura constante do Evangelho.

A enfermidade a acompanha

Aos 14 anos inicia “novos e doloridos passos do seu calvário”. É a tuberculose que começa a ação devastadora. Desesperançada pelos médicos do Recife, vovó Dindinha retorna com os netos para Macaíba.

A grandeza de espírito de Auta mais uma vez se revela: mesmo molestada pela doença implacável, Auta escreve e ensina às crianças as primeiras noções de religião. A enfermidade, todavia, não detém a sua marcha. Torna-se necessário para D. Dindinha peregrinar pelo interior, à procura de clima seco: Angicos, Nova Cruz, Utinga, São Gonçalo, Serra da Raiz, etc., são visitadas. Mas a doença avançava, mais e mais…

Retorno à pátria espiritual

Porém, laureando-se na escola da dor, fez-se intérprete fiel das emoções de todos os que sofrem resignadamente. Por esse motivo, sua poesia recebeu a consagração do carinho popular. Foi na alma do povo que seus versos encontraram a mais profunda repercussão. Francisco Palma, num soneto, define-a como ” A COTOVIA MÍSTICA DAS RIMAS”. Em 07 de fevereiro de 1901, aos 24 anos de idade, Auta de Souza desencarna em Natal, capital do Rio Grande do Norte.

Escreveu um único volume de poemas, “Horto”, publicado em 1900, pouco antes de sua morte, com prefácio de Olavo Bilac. A primeira edição esgotou-se em dois meses, ocorrendo fato análogo com a segunda edição, em 1911.

Até o presente, quatro edições do ” Horto”, vieram a público – a terceira prefaciada por Alceu Amoroso Lima, em 1936, e a última, em 1970. Sua produção poética antes de se chamar ” Horto” , tinha o nome de “Dálias”. Todo o livro é impregnado do sentimento cristão que sempre a inspirou. A mesma simplicidade, a mesma fé, a mesma ternura que emanam dos versos escritos em Espírito, pelas mãos de Francisco Cândido Xavier, podem ser identificados nos poemas da autora encarnada.

Entre a lavra da jovem enferma e a alma liberta, uma só diferença profundamente confortadora para quantos buscam o confronto sem a exclusiva preocupação de identificação do estilo – na existência física atormentada é a Ave Cativa, que canta seu anseio de liberdade, o coração resignado que busca no Cristo o consolo das bem-aventuranças prometidas aos aflitos da terra; além do túmulo é o pássaro liberto e feliz que, tornando ao ninho dos antigos infortúnios, vem trazer aos homens a mensagem de bondade e esperança, o apelo à Fé e à Caridade, indicando o rumo certo para a conquista da verdadeira vida."

Mas, voltando à sessão da Academia, no Seminário Santo Antônio, é preciso dizer que a mesma foi encerrada por um coral, que apresentou um poema de natal escrito por Auta de Souza, que recebeu a devida partitura musical. Eis o texto:

Rezando

(A Laura Ramos)

Róseo menino
Feito de luz,
Lírio divino,
Santo Jesus!

Meu cravo olente,
Cor de marfim,
Pobre inocente,
Branco jasmim!

Entre as palhinhas,
Pequeno amor,
Das criancinhas
Tu és a flor.

Cabelo louro,
Olhos azuis...
És meu tesouro,
Manso Jesus!

Estrela pura,
Santo farol,
Flor de candura,
Raio de sol...

Dá-me a esperança
N’um teu olhar:
Loura criança,
Me ensina a amar.

Sonho formoso
Cheio de luz,
Jesus piedoso,
Meu bom Jesus...

Como eu te adoro,
Pequeno assim!
Jesus, eu choro,
Tem dó de mim.

No doce encanto
De um riso teu,
Jesus tão santo,
Leva-me ao Céu!

Em ti espero,
Mostra-me a luz...
Leva-me, eu quero
Ver-te Jesus!
- Auta de Souza, [Macaíba - Noite de Natal - 1896], in “Horto”, 1900.

(Na internet, o leitor encontra os poemas de Auta de Souza).