quarta-feira, 23 de maio de 2012

O DIÁLOGO ENTRE O EXORCISTA E O SENHOR DAS TREVAS




Cena do filme "O Exorcismo de Emily Rose", que foi baseado no caso real da jovem Anneliese Michel - Reprodução/O Exorcismo de Emily Rose






 




O diálogo publicado a seguir foi extraído do livro O FILHO DE ANITA, de R.H.Souza, no qual o exorcista, personagem central da obra, trava um debate com o Senhor das Trevas que se expressa através de Anita, a jovem que todos julgam estar possuída pelo Demônio. O Espírito do Mal demonstra um amplo conhecimento das Escrituras, fato demonstrado em diversos casos de possessão pesquisados pelo autor. Anita revela também um conhecimento extraordinário sobre as pessoas, revelando seus segredos mais íntimos. A seguir, a íntegra do capítulo XI do referido livro.

“Os recém-chegados estavam reunidos com Pacheco e sua mãe, na sala de jantar, à volta da grande mesa da família, quando, ao final da refeição, Anita, sorridente, entrou e cumprimentou a todos.
       – Então, Frei Gaspar, a que devemos a honra da visita, agora acompanhado de um doutor e de mais um frade?
       – Anita, trouxemos conosco o dr. Sartório, um médico muito conceituado na cidade de Lages, que irá  conversar um pouco contigo.
       – Conversar sobre o quê?
       – Ele quer te examinar para ver como está a tua saúde.
       – O sr. sabe que eu não tenho nada. Nunca me senti melhor.
       – Você tem um problema nos nervos, minha filha –, disse d. Madalena – e o dr. Sartório é um médico muito famoso da cidade grande. Ele gostaria de falar um pouco contigo.
       – Eu sei que o dr. Cláudio já esteve aqui, Anita – completou o médico. – Ele me fez um diagnóstico do teu estado de saúde. Embora eu saiba da competência dele, apenas gostaria de confirmar esse diagnóstico.
       – Eu já falei que não tenho nada –, esbravejou ela – atirando um copo em cima da mesa que se espatifou.
       Pacheco e mais algumas pessoas presentes correram e seguraram a jovem, que esperneava e espumava, com os olhos esbugalhados, ao entrar numa daquelas crises costumeiras. Eles a colocaram numa cama no quarto anexo, e a seguravam, fortemente, para que não quebrasse tudo. O médico se aproximou, tomou-lhe o pulso e, a seguir, se voltou para os frades e disse a meia--voz:
       – Ela apresenta aceleração normal das pulsações, o que me parece impossível diante de tanta agitação. Não encontro explicações para o fenomeno.
       – Não encontras explicações, porque  tu não sabes nada, seu médico de merda – gritou Anita, com acentuada alteração da voz.
       Já não parecia a delicada jovem quem falava, mas outra pessoa que falava  por ela. A  voz  se tornou cavernosa, brotando do fundo da garganta. Dr. Sartório perguntou-lhe:
       – Dize-me uma coisa, Anita, sentes dor na cabeça, alguma dor ou pressão no peito?
       – Eu sinto é vergonha de ti, seu italiano trapaceiro. Passas os dias naquele consultório a enganar os clientes. E como vai tua amante, a enfermeira Amália, bonita e sedutora?
       – Não vim aqui para discutir contigo detalhes da minha vida particular, Anita. Vim até aqui para te atender profissionalmente, a convite de Frei Gaspar e de Frei Protásio.
       – Continuas traindo tua mulher com a bela Amália, não é mesmo? Todo mundo na cidade sabe que gostas de pular a cerca.
       – Vamos deixar a vida particular do médico fora disso – arriscou Frei Protásio. – Ele não andou léguas e léguas até aqui para ser ofendido.
       – Ah! Então, o fradeco sabichão também gosta de dar seus palpites. É o grande teólogo, o sabe-tudo do convento. O orgulho é um dos sete pecados capitais, Reverendo.
       João Custódio que estava a um canto do quarto, neste ponto do diálogo, resolveu sair de mansinho, sem ser percebido, mas as palavras da jovem o alcançaram na soleira da porta:
       – Não precisas sair assim, furtivamente, João Custódio. Estás com medo que eu conte que enganas o santo, surripiando parte do dinheiro das espórtulas? Fazes teu pé de meia às custas da burrice do teu patrão, Frei Gaspar, e do anterior... o tal de Frei... como era mesmo o nome dele? Ah! agora me lembrei... era Frei Romualdo.Tens essa carinha de anjo, mas no fundo não passas de um velhaco e espertalhão.
       Frei Gaspar achou que estava na hora de colocar um ponto final naquela ladainha acusatória. Aproximou-se da cama e falou, com voz autoritária:
       – Em nome de Jesus Cristo e de sua Santa Mãe, diz-me, Anita, o que se passa contigo. Não viemos até aqui para conhecer os pecados ou defeitos de quem quer que seja. Tu, por acaso, sabes o que aconteceu hoje com a esposa do sr. Silvério, d. Lurdes?
       – Ela falava demais e teve o que mereceu?
       – Mas.... como falava demais?
       – Ela se metia em assuntos que não eram da sua conta, por isso teve o que mereceu. E a morte da gorducha foi também um aviso para todos aqueles que querem se meter onde não foram chamados.
       – Anita – perguntou o Frade –, por acaso conheces um cavaleiro que monta um cavalo preto, acompanhado de um cão raivoso? O nome dele é Firmino... Firmino Constantino. Por acaso tu o conheces?
       – E tem importância... conhecê-lo ou não?
       – Existe uma coisa em comum entre esse cavaleiro e a tua pessoa. É uma senha, uma senha maldita que ambos pronunciam...
       – Sim! - respondeu ela. Ai... Ai dos vencidos! Vae victis! para os frades sabidos que sabem latim.
         – Eu encontrei essa senha no local do crime, na casa de Silvério. Estava escrita com o sangue da vítima, d. Lurdes.
       – Fui eu quem escreveu a senha na parede – disse a jovem,  dando uma sonora gargalhada. – Espero que o exemplo sirva para todos que querem me contrariar.
       – Ninguém quer te contrariar, Anita. Pelo contrário, todos estamos aqui para te ajudar: Dr. Sartório, Frei Protásio e também a minha humilde pessoa, sem esquecer tua mãe e teu irmão, naturalmente.
       – O frade se acha tão humilde, assim? Aliás, eu tinha esquecido que és  filho de Francisco, o famoso Poverello de Assis.
       – Sim, temos muita honra, eu e meu irmão aqui presente, em sermos filhos de São Francisco, o santo que mudou o mundo...
       – Não me venhas com conversa fiada, seu fradeco, pois antes, muito tempo antes de teu Francisco existir, eu já estava por aí.
         – Então, quem és? És o espírito do mal? Se és o espírito do mal, porque não deixas o corpo de Anita? Eu te ordeno: Vade retro! Vade retro, Satana!
       – É só isso que sabes dizer? Usas as mesmas palavras que usaste lá na torre  da igreja de Anita Garibaldi, onde eu te dei aquele tremendo susto, quando o sino começou a tocar sozinho. Sozinho não, porque eu estava lá... mas tu não conseguias me ver. Quase te borraste todo, não é verdade?
       – Espírito impuro, em nome de Jesus e de sua Santa Mãe, abandona agora este corpo, porque a alma dela pertence a Deus.
       – Como ousas me dar ordens? Não tens poderes para isso.
       – Tenho o poder que me foi dado por Jesus Cristo. “E chamando os seus doze discípulos deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem e para curarem toda a enfermidade e todo o mal”. Está escrito em São Mateus e como sacerdote, sou um sucessor dos apóstolos.
         Anita ou quem por ela falava fez uma pausa, depois acrescentou:
       – Eu também conheço as escrituras. Tu te lembras deste trecho?: “E vi outra besta que subia da terra e tinha dois chifres semelhantes aos de um cordeiro, mas falava como um dragão. Exerceu toda a autoridade da primeira besta em presença dela, e fez que a terra e todos os seus habitantes adorassem a primeira besta... Adivinha quem sou? A primeira ou a segunda besta?
       – Não sei quem és – completou Frei Gaspar – , mas falas como o espírito do mal e até citas o Apocalipse de São João, só que  esqueceste a continuação do texto, que diz:   “E tive uma visão, e eis o Cordeiro que estava sobre o monte Sião, e com Ele cento e quarenta e quatro mil, que trazem o seu nome e o nome de seu Pai escritos em suas frontes. E ouvi uma voz do céu, como voz de grandes águas, como voz de um grande trovão... Temei a Deus e dai-lhe glória, porque é chegada a hora de seu juizo, e adorai aquele que fez o céu e a terra, e o mar, e a todas as fontes das águas”.
       – Basta, fradeco idiota! Não vais querer disputar comigo para saber quem conhece mais as escrituras. Eu as conheço de cor.
         Anita pronunciou as últimas palavras e calou-se. Frei Gaspar ainda insistiu em outras perguntas, mas não obteve resposta. A jovem demonstrava grande cansaço.
       Os três se retiraram do quarto e passaram à sala, para onde a família também se retirou consternada. Ali estavam calados, Pacheco, sua mãe, d. Madalena, e mais alguns empregados da fazenda. Dr. Sartório estava espantado com o que presenciara: um verdadeiro duelo entre o bem e o mal. E perguntou a Frei Protásio:
         – O que o nosso emérito teólogo acha do que acabamos de presenciar?
       – Certamente que Anita não tem conhecimentos para citar trechos do Apocalipse de São João e falar com tanta desenvoltura de outros assuntos. Parece que alguém com mais conhecimentos fala por ela. Estamos diante de um mistério, talvez mesmo diante de um caso de possessão demoníaca. A Igreja excepcionalmente reconhece que tais casos existem. Mas esperamos que a ciência do dr. consiga esclarecer melhor.
       – Não tenho muito a dizer, meu caro frei. Não estou espantado... estou estupefacto. Nunca presenciei nada semelhante.
       Pacheco entrou no quarto onde estava Anita e, ao retornar, se aproximou do médico e falou:
       – Ela está saindo da crise. Deverá dormir por um certo tempo. Depois que retornar ao normal, talvez o sr. possa examiná-la
       Algum tempo depois o médico se aproximou do leito de Anita, que dormia profundamente. Ficou  a  observá-la  e não viu nada que lhe chamasse a atenção: a respiração era pausada, as pulsações normais. Lentamente ela despertou e sentou-se na cama com os olhos fixos no médico.
       – Que fazes aqui? –  perguntou?
       – Sou um médico e quero examiná-la.
       – Achas que estou doente?
       – Não posso adiantar nada, sem um exame minucioso – respondeu ele.
       – Pois se achas que é preciso um exame, por que não o fazes logo, dr.... como é mesmo o teu nome?
       – Dr. Sartório...
       Enquanto pronunciava as últimas palavras, ele se preparava para o exame médico mais complexo de toda a sua carreira. Meia hora depois saiu do quarto e retornou à sala, onde todos o aguardavam com ansiedade. Aproximou-se de Pacheco e de sua mãe e anunciou:
       – Não encontrei nada de anormal em Anita. Passada a crise, ela apresenta os sintomas de uma pessoa saudável. Comportou-se, durante o exame, como uma pessoa normal, educada e sensível.
       – Esta é a verdadeira Anita, doutor – acrescentou d. Madalena. – Esta é a  minha  filha  que todos conhecem e amam. Ela sempre foi uma menina muito meiga, simpática, educada. A outra Anita, nós não reconhecemos.
       – Por enquanto, não posso fazer mais nada. Talvez os frades, meus amigos, possam ajudá-la com suas preces. Não disponho de recursos aqui para dar um diagnóstico definitivo. Acho que devemos levá-la para Lages e lá, no Hospital Municipal, reunirmos uma junta médica de várias especialidades e fazer alguns exames. Seria uma solução. Mas isso depende da concordância da família.
       – Se for bom para ela – se antecipou Pacheco – eu me disponho a qualquer sacrifício e a levarei  a Lages.
       – Se for bom para ela, é bom para todos nós – acrescentou d. Madalena.
       – Mas fique bem claro uma coisa: é uma tentativa, sem garantia nenhuma de cura. Mas acho que vale a pena tentar.
       – Se dr. Sartório acha, nós também achamos, responderam em coro Pacheco e  d. Madalena.
       – Então, é só marcarmos a data.
         Enquanto falavam, Anita entrou na sala, sorridente e perguntou:
       – Quer dizer, então, que iremos todos a Lages? Estive lá pela primeira vez, quando era pequena, em companhia de meu pai. Tenho uma tia, irmã de meu falecido pai, que mora lá e foi na casa dela que fiquei durante os meus estudos no Colégio Santa Rosa. Posso ficar hospedada em sua casa.
       – Vamos iniciar os preparativos para a viagem – informou Pacheco. – Essa viagem será muito boa para ti, mana.
       – Eu irei contigo – acrescentou a mãe da jovem – e te farei companhia em todos os momentos.
       – Eu te darei toda a assistência, menina – disse dr. Sartório –, além de contares com a assistência espiritual de Frei Gaspar e de Frei Protásio.

      O ambiente ficou descontraído, a presença de Anita encheu a todos de alegria. Nesse clima foi servido o jantar, do qual ela também participou. Quando chegou a noite, todos se recolheram a seus aposentos, pois estavam muito cansados e precisavam se preparar para o dia seguinte, quando d. Lurdes seria sepultada e se iniciariam as investigações para esclarecer o bárbaro crime cometido, cujo principal suspeito era sem dúvida o misterioso Firmino Osório Constantino”.





segunda-feira, 14 de maio de 2012

OS ESCRAVOS AMERICANOS E O LIVRO





No ano de 1660, Carlos II da Inglaterra decretou que  
os proprietários de terras nas colônias britânicas deveriam promover a instrução dos nativos, servos e escravos, nos preceitos do cristianismo. Ele teria se inspirado em ensina-mentos de Lutero que afirmava que a salvação da alma dependia da capacidade de cada um de ler a palavra de Deus por si mesmo. Naturalmente que essa não era a opinião dos senhores de escravos nas colônias britânicas, pois temiam que uma população negra alfabetizada poderia encontrar nos livros ideias revolucionárias perigosas. A leitura da própria bíblia poderia lhes fornecer noções incendiárias de revolta e liberdade.

A oposição ao decreto de Carlos foi mais forte nas colônicas americanas e mais forte ainda na Carolina do Norte, onde, um século depois, criaram-se leis proibindo a alfabetização de todos os negros, escravos ou livres, leis essas que perduraram até a metade do século XIX.

O escritor Alberto Manguel, em seu livro Uma História da Leitura (Companhia das Letras) escreveu:

“Durante séculos, os escravos afro-americanos aprenderam a ler em condições extraordinariamente difíceis, arriscando a vida, mum processo que, devido às dificuldades, levava às vezes vários anos. Os relatos desse aprendizado são muitos e heróicos.Entrevistada aos noventa anos pelo Federal Writers´Project (Projeto Federal dos Escritores), uma comissão criada na década de 1930 para registrar entre outras coisas, as narrativas pessoais de ex-escravos, Belle Myers Carothers relembrou que aprendeu as letras enquanto cuidava do bebê do dono da fazenda, que brincava  com cubos alfabéticos. O dono, ar ver o que ela estava fazendo, chutou-a com as botas que calçava. Meyers perseverou, estudando às escondidas as letras da criança, bem como algumas palavras numa cartilha que achara. Um dia, disse ela, “achei um hinário [...] e soletrei: ‘Quando Posso Ler Meu Título Claro’. Fiquei tão contente quando vi que podia realmente ler que fui correndo contar para todos os outros escravos”.
O senhor de Leonard Black, encontrando-o uma vez com um livro, açoitou-o tanto “que superou minha sede de conhecimento, e eu abandonei a busca até que fugi”.
Doc Daniel Dowdy lembrava que “a primeira vez que você era surpreendido tentando ler ou  escrever, você era açoitado com um relho de coro cru; na segunda vez, com um chicote de nove tiras; na terceira vez cortavam a ponta de seu dedo indicador”. 

Em todo o Sul, era comum os donos de fazendas enforcarem os escravos que tentassem ensinar os outros a soletrar".

No Brasil, o panorama foi um pouco diferente, face aos trabalhos dos jesuitas e de outras ordens religiosas que, no afã de catequisar brancos, índios e escravos, permitiam que os  filhos desses últimos também frequentassem suas escolas.

Termino com uma estrofe do famoso poema de Castro Alves, intitulado: O Livro e a América:


“Por isso na impaciência
Desta sede de saber, 
Como as aves do deserto
As almas buscam beber... 
Oh! Bendito o que semeia 
Livros... livros à mão cheia... 
E manda o povo pensar! 
O livro caindo n'alma 
É germe — que faz a palma, 
É chuva — que faz o mar”.






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