Capítulo 15
Libório Antunes dos Santos
fazia em seu escritório diversos apontamentos sobre o movimento financeiro da
fazenda, quando mandou Isabel chamar à sua presença o capataz Justino. O homem,
ainda meio desconfiado, diante do fracasso de sua perseguição ao casal Virgílio
e Sofia, entrou na sala e falou com voz quase imperceptível:
– O patrão mandou me chamar? Estou às suas ordens.
– Sim, mandei. Quero que vás até Abdon Batista e
procura ali um homem chamado Jerônimo de Assis. Ele já me prestou alguns
serviços no passado e preciso dele com urgência aqui na fazenda.
– O sr. tem o endereço dele?
– Não, mas é muito conhecido na cidade. Pergunta
nas vendas e bodegas, pois todos o conhecem.
– Posso saber o que o sr. quer com esse Jerônimo?
– Podes, sim. Quero ele para fazer o serviço que
não fizeste e me traga de volta os fujões.
No dia seguinte, Justino partiu para Abdon Batista
à procura de Jerônimo de Assis. Na primeira venda em que perguntou por ele,
logo lhe indicaram o local de sua residência. Ele morava numa fazendola fora da
cidade, para onde o capataz seguiu imediatamente.
Jerônimo de Assis era uma
espécie de pistoleiro-detetive. Era um homem de estatura elevada, pele queimada
do sol, vestia bombachas e botas gaúchas, sempre com um lenço vermelho ao
pescoço. Era simpático e bem falante. Quando alguém tinha um problema
complicado, que significava a prisão ou a eliminação de algum desafeto, lhe
encomendava o serviço, em troca de um bom pagamento. Servira na Revolução de
Trinta, quando acompanhou as tropas de
Getúlio Vargas em direção ao Rio de Janeiro. Ao se alistar nas fileiras
rebeldes, foi categórico ao pronunciar uma frase, que gerou muitos comentários
e gozações dos vizinhos: “Eu participo da revolução, mas só vou de cabo pra
cima”. Como tinha
alguns empregados e muitos cavalos, deram-lhe o posto de capitão, posto do qual
tinha muito orgulho. Na sala principal da casa tinha um grande retrato pendurado
à parede em que ostentava com muito orgulho o uniforme de oficial
revolucionário.
Quando
retornou do Rio de Janeiro, ao final da revolução, exerceu diversas funções na
região, como delegado, investigador e,
finalmente, como justiceiro, com a fama de muito eficiente. Geralmente,
trabalhava sozinho, mas se a tarefa era complexa, levava também alguns
capangas. Era conhecido na região como o Capitão Jerônimo.
Libório Antunes recebeu Jerônimo com toda a indispensável
deferência:
– Há quanto
tempo não nos vemos, capitão?
– Há
bastante tempo, Coronel Libório. Foi na época em que o sr. assumiu a fazenda,
após a morte de seu pai, que lhe prestei o último serviço. Mas, agora, vejo que
o amigo prosperou muito. Que bela fazenda!
– É... temos conseguido bons resultados. A terra é
boa para a agricultura, temos boas pastagens para o gado, mercado para os
produtos.
– Mas em que posso ser de utilidade para o coronel?
A seguir, Libório explicou ao capitão Jerônimo o
objetivo de sua missão. Mostrou uma foto do casal Virgílio e Sofia, tiradas no
dia do casamento, e disse que precisava trazer os dois de volta para a fazenda,
pois tinham fugido, depois de roubarem dois cavalos de uma propriedade vizinha.
– O sr. quer eles de volta por causa do roubo dos
cavalos?
– Não. Isso é problema do
vizinho. E também tenho dúvidas que tenham roubado os animais...talvez tenham
comprado. Não é essa a razão. O fato é que esse casal me serviu durante muitos
anos e não pode, sem mais nem menos, se mandar, abandonando o serviço
por causa de uma desavença ocorrida aqui, no dia de seu casamento. Eles
resolveram bater asas... E o sr. compreende, eles sabem demais sobre a fazenda,
pois o marido, o tal de Virgílio, foi professor de meu filho durante muitos
anos e agora me ajudava na administração. Todo negócio tem seus segredinhos e eu
quero preservá-los
– Então, é um serviço simples...não vai correr sangue?
– Não, de maneira alguma,
não quero sangue. Mas, o serviço não é tão simples, capitão, pois não temos ideia
do rumo que tomaram. Meu capataz e alguns peões foram atrás deles, mas se
mostraram mais espertos e sumiram no mato.
– O sr. tem alguma pista?
– No momento, sei apenas que foram para a outra
margem do Canoas. Podem estar vivendo por aí, num sítio, perto de Anita
Garibaldi, podem ter ido para Cerro Negro, Campo Belo, Capão Alto ou talvez
estejam morando em Lages, pois o homem é professor... aliás um bom
professor e vai achar emprego com facilidade.
– Não é um trabalho fácil e pode demorar – disse
Jerônimo.– Não posso nem lhe dar um preço pelo serviço, pois não sei se vai
durar dias ou semanas. E como tenho que trazer os dois de volta, preciso levar
um ajudante.
– Irá viajar, como... a cavalo?
– Não, agora já tenho o meu Fordinho, que é muito
bom para rodar por essas estradas. Quero só que o sr. me faça um adiantamento
para as despesas de gasolina, hospedagem, alimentação. No final, fechamos tudo
por um preço justo.
– Dinheiro não é problema – concluiu Libório.
– O seu capataz me falou que o senhor tem um filho.
Eu não sabia...
– Sim, tenho um guri muito bonito e inteligente,
que hoje está com 17 anos e estuda num colégio interno, no Paraná. O nome dele
é Júlio César.
– Ótimo! Assim, o amigo tem
um sucessor para administrar a fazenda.
– Quero
mais do que isso para ele.
– Está certo, coronel. Sempre procuramos o melhor para os nossos filhos.
Jerônimo retornou a Abdon
Batista e começou os preparativos para a caçada, que se iniciaria nas próximas
horas. Escolheu um empregado, de nome Inácio, para ajudá-lo, porque o rapaz era
também motorista e poderia conduzir o carro, um pequeno Ford T, entre os muitos
que agora circulavam pelo interior do Estado. Jerônimo traçou um mapa que começaria
por Anita Garibaldi, onde também tinha muitos conhecidos, que poderiam ajudá-lo
na tarefa. Afinal, um rapaz alto, de porte atlético, acompanhado de uma bonita
mulher, não passariam despercebidos. Depois de muitas conversas no povoado, o
capitão chegou à conclusão que ali o casal não estava escondido e
resolveu partir para Cerro Negro, a povoação mais próxima, e
que ficava perto de Anita Garibaldi.
Jerônimo e Inácio chegaram a Cerro Negro num final
de tarde de uma sexta-feira e se dirigiram à pensão de d. Luiza, a única do
lugar. Na hora do jantar, Jerônimo tirou do bolso a foto do casal fujão e mostrou-a
à dona da casa, perguntando-lhe se os dois não teriam se hospedado ali. A
mulher ficou desconfiada e quis saber se os dois tinham cometido algum crime ou
coisa parecida.
– Não! Pelo contrário, d. Luíza – respondeu Jerônimo
–, eles não cometeram crime nenhum. Acontece que Sofia, a mulher de Virgílio,
tinha uma tia, rica fazendeira, que morava
– Não me diga, seu Jerônimo. Que coisa maravilhosa,
pois eles iam para Lages atrás de trabalho.
– Eles
foram para Lages?
– Sim!
Vieram até aqui a cavalo, venderam os animais e tomaram o ônibus para lá.
A estratégia do Capitão Jeronimo dera certo. Virou-se
para o companheiro e falou:
– Então, amigo Inácio, estamos perto de achar a
nova milionária. Amanhã, vamos botar o carrinho na estrada.
Os dois pistoleiros acordaram bem cedo, no dia
seguinte, e partiram para Lages. As coisas estavam mais fáceis do que tinham
imaginado. Chegaram, à tarde, à cidade e a primeira coisa que
fizeram foi procurar a estação
rodoviária, pois o casal, certamente, devia ter
desembarcado ali. Mostraram a foto ao chefe da estação, que reconheceu
os dois, mas não tinha ideia para onde se dirigiram. Em seguida, andaram ate o
o mercado municipal, que ficava bem próximo, e foram de loja em loja, fazendo
as mesmas perguntas, até que, numa padaria próxima, um balconista reconheceu a
mulher. Disse que ela vinha todos os dias de manhã comprar pão, mas não sabia
onde morava.
– Inácio – disse Jerônimo
–, hoje não podemos fazer mais nada. Precisamos descansar e comer alguma coisa. Vamos procurar uma pensão aqui perto e, amanhã,
levantamos cedo e faremos plantão nas proximidades da padaria, pois eles devem
morar por perto.
– Por que não perguntamos pro povo se conhecem
eles? –disse Inácio.
– Se começarmos a fazer muitas perguntas, vamos
levantar suspeitas e eles acabam escapando de novo. Neste negócio, Inácio, a
melhor arma é a surpresa.
No dia seguinte, Jerônimo e
seu comparsa levantaram cedo e ficaram de longe vigiando a padaria. Por volta das sete horas, quem
apareceu para comprar pão, foi Virgílio. Ele saiu da padaria e seguiu até uma
rua que subia em direção a uma construção que ficava no alto de um morro,
parecendo um castelo, mas que, na verdade, se tratava de uma estação de fomento
agropecuário do governo estadual.
Virgílio, sem desconfiar de nada, subiu pela rua principal e depois entrou numa
ruela à direita e parou diante de uma pequena casa de madeira. Tirou a chave do
bolso e abriu a porta. Quando entrava, Jerônimo se aproximou, enquanto Inácio
vigiava a saída dos fundos.
– O amigo é, por acaso, o professor Virgílio?
Virgílio voltou-se, assustado, e nada respondeu.
– É que eu estou procurando um professor para o meu
filho – acrescentou Jerônimo – e fui informado que o sr. é bom explicador.
– Tenho alguns alunos e dou aulas aqui na minha
casa.
– Eu podia entrar, para combinarmos os detalhes?
Diante da tranquilidade de Jerônimo, o professor
deixou que ele entrasse, enquanto Inácio ficava ao longe, para não levantar
suspeita. Virgílio ofereceu uma cadeira ao visitante e foi até a cozinha levar
o pão, pois Sofia já preparava o café.
– Quem está aí ?– perguntou a mulher.
– É alguém interessado em aulas para o filho.
– Toma cuidado – disse ela em voz baixa –, porque
ninguém vem a esta hora tratar de aula.
Virgílio voltou à sala, enquanto Jerônimo observava
a rua, através da pequena janela.
– Posso saber o seu nome? – perguntou Virgílio.
– É claro, professor. Eu me chamo Jerônimo de Assis
e estou aqui para falar também com sua mulher.
– Quem trata de aulas sou eu e não minha
mulher.
– Eu quero também falar com ela. Sofia não é o seu
nome?
Sofia, da cozinha, ouviu o visitante pronunciar o seu
nome, ficou assustada e resolveu entrar na sala, para ver o que acontecia.
Virgílio começou a entrar em pânico, mas procurou se controlar, para não
assustar a mulher, que logo falou:
– Posso saber por quê o
cavalheiro quer falar comigo?
– Na verdade
– disse Jerônimo – eu preciso falar com
os dois, pois fui encarregado de uma missão especial.
O casal, certamente, conhece um fazendeiro lá pras bandas de Campos Novos, de
nome Libório Antunes dos Santos.
Virgílio
e Sofia foram tomados pelo pânico ao ouvirem o nome do fazendeiro e ficaram, por
alguns momentos, sem fala. Jerônimo procurou tranquilizá-los:
– Não quero que fiquem assustados, pois vim em
missão de paz. O coronel Libório convida o casal a voltar pra fazenda, pois
ambos fazem uma falta danada por lá. O professor, porque era o braço direito
dele nas escritas e dona Sofia, porque ajudava na administração da casa. Dona
Isabel está com muita saudade da senhora.
– Será que o forasteiro pode me repetir o seu nome?
– arriscou Virgílio.
– Certamente que sim. Meu nome, como já lhe disse,
é Jerônimo, Jerônimo de Assis, mais conhecido como Capitão Jerônimo. Estou
acompanhado, nesta empreitada, pelo companheiro Inácio, que é também meu
motorista. Nosso carro está parado na garagem do hotel e é nele que iremos
levar o casal de volta à Fazenda Pedras Negras. Peço que façam as malas, pois
queremos partir ainda hoje de manhã. O coronel Libório tem pressa em revê-los.
– E se não quisermos acompanhá-lo? – arriscou
Sofia, que tremia de medo.
Jerônimo tirou o revólver 38, cano longo, que
trazia à cintura e o colocou sobre a mesa, enquanto falava:
– Se não quiserem ir, vou
ter que usar de outras falas. Quero fazer tudo na mansidão, pois não sou homem
de violência. Já lutei pela liberdade na Revolução de 30, ao lado do dr. Getúlio,
mas não gosto de violência. Prefiro
fazer tudo na diplomacia. O casal não precisa ficar nervoso, porque não
pretendo atentar contra sua integridade física. D. Sofia pode acabar com calma
o seu café, que está bastante cheiroso. E, se nos convidarem, meu companheiro e
eu aceitamos uma xícara, porque ainda estamos em jejum.
A seguir, o capitão chamou Inácio e juntos tomaram
o café que Sofia lhes serviu. Mandou, então, o subordinado até o hotel fechar a
conta e trazer o carro. Disse para o casal preparar as malas, pois tão logo
Inácio retornasse, eles iriam partir. Pediu que agissem com serenidade para não
levantar suspeitas na vizinhança.
– O que vamos fazer com a mobília da casa? –
perguntou Virgílio.
– Levem somente o indispensável. Talvez possam retornar
outro dia e resolver assuntos relativos à casa. Vai depender da conversa que
terão com o Coronel Libório.
– O senhor disse que lutou pela liberdade na
Revolução de 30 – falou Sofia. – O que
está fazendo conosco, por acaso, tem algo a ver com a liberdade?
– Esse é um problema do Coronel Libório. Assumi com
ele um compromisso e vou honrar minha
palavra.
– O sr. sabe o que nos espera da parte do Coronel
Libório – acrescentou a mulher de Virgílio. – Bem que poderia nos deixar
– Eu lamento a situação do casal, mas apenas faço o meu trabalho. Como já disse, tenho minha palavra empenhada com o Coronel Libório e, para um homem como eu, palavra empenhada é questão de honra.
Por volta das 9h30 da manhã, Inácio sentou-se ao
volante do Ford T e Jerônimo mandou que Virgílio tomasse assento ao lado do
motorista, enquanto ele e Sofia iam no banco de trás. Todos iam em silêncio,
embora Virgílio e Sofia não pudessem disfarçar o medo que os afligia. Ela
procurava esconder as lágrimas, diante da trágica situação. O carro desceu,
lentamente, a ladeira e por uma rua lateral, dirigiu-se à saída da cidade, pegando
uma rodovia mais ao norte, que os levaria diretamente a Campos Novos,
sem ter que
passar pelos lugares anteriormente percorridos. Se o carro mantivesse uma
velocidade média de
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