"Os dias de
Anita na Toca do Diabo transcorriam com relativa tranquilidade, mas as
noites eram tempestuosas. Ela tinha horríveis pesadelos, sonhava que Firmino
Constantino a violentava, que Nefasta a encarava com aquele olhar frio e
cortante, acompanhado de sonoras gargalhadas. Soldante rosnava próximo de seu
rosto e ela caía do cavalo, só que a queda
era num abismo profundo. Em seus pesadelos via os peões da fazenda, como
zumbis, parados à volta de seu leito, observando-a. Quando acordava de manhã,
estava suada e cansada, com os pensamentos embaralhados. Nesses momentos, não
se lembrava bem da mãe e do irmão, de Ricardo, seu noivo, cujo assassinato ela
desconhecia, nem de Frei Gaspar e dos empregados da Fazenda Santa Bárbara. Seus
pensamentos se alternavam entre lucidez momentânea e períodos de grande
confusão e perda de memória.
Mais ou menos uma semana depois do sequestro,
próximo da hora do jantar, Nefasta entrou no quarto de Anita e disse:
– Hoje, o Poderoso te convida para jantar
com ele, convite que naturalmente não podes recusar. Primeiro, tomas o teu
banho e depois irás vestir as mais lindas roupas que estão ali naquele armário.
Podes ficar tranquila que eu irei te ajudar. Em primeiro lugar, vou preparar a
água do banho.
– Por que esse convite, repentinamente?
– Ele não convida qualquer um para jantar
e este é um jantar importante, porque hoje é o dia do seu aniversário e serás a
convidada de honra.
– Aniversário? Eu não sabia.
– Ele mandou preparar algo muito especial,
porque, além do aniversário, ele gosta muito de ti, Anita. Por favor, não o
decepcione. Hoje, ele está muito feliz e tu fazes parte dessa alegria.
Nefasta se retirou e mandou as empregadas
trazerem a água para o banho da sua princesa. Depois que a grande banheira
estava cheia, a Governanta colocou sais perfumados e espalhou pétalas de flores
sobre a água e disse para Anita iniciar o banho, enquanto ela escolhia no
armário o traje para o jantar.
Quando terminou de banhar-se, Anita
entrou no quarto com uma toalha lhe envolvendo o corpo. Sobre a cama já estavam
arrumadas as vestes que deveria
usar para o misterioso jantar.
Nefasta iniciou, então, um verdadeiro tratamento de beleza, executado
por mãos hábeis, demonstrando grande conhecimento no desem-penho da tarefa.
Começou pelos cabelos, que foram escovados e depois friccionados com óleos
especiais. Para amaciar a pele, usou cremes perfumados, além de cosméticos apropriados
para os olhos, os lábios e as faces. Eram produtos importados e Anita, que
aprendera francês com a freiras em Lages, viu nas embalagens que se tratava de
produtos procedentes de Paris, das mais famosas marcas. Só não entendia como
eles tinham chegado até a Toca do Diabo.
Depois que a princesa vestiu a
lingerie íntima, Nefasta colocou sobre
seu corpo um longo vestido de seda vermelho, de finíssimo
acabamento, envolvendo-lhe a cintura com um cinto bordado a ouro. Calçou-lhe as meias de seda e
nos pés lhe colocou finos sapatos de salto alto, última moda em Paris, de
acordo com suas palavras. Para adornar o colo, Anita recebeu um colar de faiscantes
diamantes.
A governanta se afastou um pouco para ter
uma visão de corpo inteiro de sua pupila. Voltou ao armário e trouxe uma
luxuosa pele de chinchila que colocou sobre os ombros da jovem e nos cabelos
lhe assentou um delicado diadema de ouro. Finalmente, trouxe um pequenino
frasco de perfume francês e aplicou-lhe algumas gotículas nos braços e pescoço.
Só então proclamou:
– Agora, estás uma princesa de verdade,
digna do nosso Todo Poderoso, porque estás verdadeiramente linda, minha
querida. Olha no espelho e terás certeza do que eu digo.
Anita, vendo-se no grande espelho que ficava a um canto do quarto, ficou
fascinada pela própria beleza e dissipou-se a nuvem de ansiedade que lhe
toldava o espírito diante do inusitado convite para o jantar. Mas um pensamento
de repente aflorou do subconsciente: ”De que vale ao homem ganhar o mundo
inteiro se vier a perder a sua alma?”. Sua alma poderia estar em perigo
diante de tanto luxo e vaidade. E foi a governanta quem a trouxe de volta à
realidade:
– Está na hora, princesa. Vamos entrar
que o Poderoso te espera com muita ansiedade.
Nefasta abriu a porta do quarto e Anita
entrou pelo pequeno corredor e foi em direção à sala de jantar, feericamente
iluminada. A grande mesa estava posta, coberta por uma linda toalha de linho
branco, a baixela era de prata reluzente, os pratos da mais fina porcelana. Os
copos, de cristal finíssimo, rebrilhavam à luz das velas e os talheres eram de
ouro. As cabeceiras da mesa estavam preparadas para receber apenas dois
comensais. Anita ficou aturdida com tanto luxo e suntuosidade. Foi então que um
vulto saiu do quarto de hóspedes e bateu palmas entusiásticas. Era Firmino
Osório Constantino, o Poderoso.
– Parabéns, minha querida! Como estás
linda e maravilhosa nessas roupas que eu mandei
buscar em Paris, especialmente para ti, no dia de hoje.
Firmino vestia calças de veludo escuro,
com uma linda camisa branca de cambraia, sobre a qual ostentava um colete
também de veludo. Do pescoço lhe pendia um pesado cordão de ouro. Calçava finos
sapatos de cromo alemão, com polainas de pele de castor. Aproximou-se de Anita
e a conduziu pelo braço até uma das cabeceiras da mesa, acomodando-a na
cadeira, enquanto falava:
– Hoje, minha querida, estou feliz,
porque é um grande dia para todos nós.
– Meus parabéns pelo seu aniversário.
– Obrigado, minha querida, muito
obrigado, mas estamos festejando muito mais do que o meu aniversário.
– Mais
o quê?
– Por enquanto é segredo. Logo, logo
saberás de tudo. O importante agora é este jantar festivo. Mandei preparar um
cardápio digno dos maiores maitres, acom-panhado também de um bom vinho
francês.
– Por que tudo aqui é ligado à França? –
perguntou Anita. – São francesas as roupas que visto, franceses são os
perfumes, agora até a comida e o vinho...
– Porque a França, minha querida, particularmente
Paris, é a terra da arte, da beleza, das mulheres bonitas e, principalmente,
minha cara, é a terra do prazer e do pecado.
Ao pronunciar as últimas palavras, o
Poderoso sorriu maliciosamente, enquanto se dirigia para o seu lugar, na outra
cabeceira da mesa. Fez então sinal para que Nefasta e as criadas começassem a
servir o jantar, na verdade um suntuoso jantar com iguarias raras que Anita
nunca imaginara que pudessem ser preparadas naquele fim de mundo. Quando foi
servido o vinho, Firmino ergueu um brinde à saúde de Anita e à sua própria
saúde, pois, afinal, o aniversariante era ele.
Já no final do jantar, Anita tinha bebido
duas taças de vinho e Nefasta lhe serviu mais
uma. Neste momento, Firmino olhava para a jovem, fixamente, e ela começou a ficar perturbada, pois se
sentia hipnotizada por aqueles olhos penetrantes. Ela caiu numa espécie de
torpor, enquanto seu corpo era tomado de intenso prazer e bem-estar, como nunca
antes acontecera.
De repente, a jovem começou a ouvir uma
música em ritmo alucinante, ao mesmo tempo em que entravam no recinto numerosas
figuras de mulheres semidespidas, muito formosas, que lembravam as ninfas da
mitologia e começaram a dançar ao ritmo frenético da música. Depois, entraram sátiros, seres lascivos, com corpo humano e pernas e
pés de bode, que também aderiram ao ritmo diabólico. Na regência daquele baile
infernal, estava Firmino, o Poderoso, que dava gargalhadas e servia taças e mais
taças de vinho a todos, enquanto ele
mesmo rodopiava em meio ao turbilhão de prazer e orgia. As ninfas se
aproximavam de Anita e lhe exibiam os corpos seminus, de seios desnudos e
Nefasta gritava: “Mais vinho, toma mais vinho, princesa!”,
enquanto enchia sua taça até o líquido transbordar e escorrer pela toalha da
mesa. Era uma dança sensual, lasciva e
libidinosa.
Anita não tinha mais noção de tempo e
espaço, enquanto prosseguia a dança alucinante. Firmino se aproximou dela e puxou-a pelo
braço, obrigando-a a participar do ritmo frenético e ela começou a dançar,
dançar, volutear, enquanto os sátiros agarravam as ninfas e as arrastavam
brutalmente para os cantos da sala e as possuíam ali, à vista da platéia, que
aplaudia. Depois, todos voltavam ao centro da sala e bailavam, bebendo novas
taças de vinho que Firmino lhes oferecia, enquanto bradava: “Viva o prazer,
viva o sexo, viva a lascívia, viva o pecado!”. E eles, em coro, respondiam:
“Viva o prazer, viva o sexo, viva a lascívia, viva o pecado e viva o nosso
Senhor Todo Poderoso, a quem rendemos honra e glória”.
Anita foi despertada daquele pesadelo
pela voz de Nefasta:
– Minha princesa, está na hora de dormir,
pois estás muito cansada. Já preparei tua cama e podes te recolher.
A jovem olhou à volta e a sala estava
como no início do jantar. Firmino continuava em seu lugar, enquanto
bebia lentamente mais uma taça de vinho. Anita perguntou:
– E aquela gente toda que estava aqui?
– A que gente te referes? – perguntou
Nefasta, enquanto o Poderoso sorria satisfeito.
– Tinha muita gente aqui: mulheres, seres
esquisitos, sátiros, ninfas. Todos bebiam, dançavam e praticavam atos
pecaminosos.
– É o vinho, minha querida – acrescentou
Firmino. – Bebeste um pouco além da tua resistência.
Anita se despediu de Firmino
e se retirou
para o quarto, acompanhada de Nefasta,
que a ajudou a trocar os trajes de festa por roupas de dormir. Colocou-lhe
sobre o corpo uma camisola muito sensual que lhe deixava os seios praticamente
à mostra. Depois, falando baixinho, completou:
– Tenho certeza de que desta, ele vai
gostar.
Anita não chegou a prestar atenção às
últimas palavras de Nefasta. Deitou-se e caiu logo em sono profundo, pois o
vinho que bebera parecia funcionar como forte narcótico. Quando
acordou, na manhã seguinte, a jovem viu Firmino Constantino saindo do quarto de banho, vestindo as roupas que
costumava usar na fazenda. Teve a sensação de que alguém dormira na cama com
ela, pois o travesseiro e as cobertas estavam revirados e ela estava nua sob as
cobertas. Sua camisola jazia aos pés da cama. Muito nervosa, perguntou:
– O
que fazes aqui? Por que estou sem a minha roupa de dormir?
– Nefasta me disse que o vinho te subiu a
cabeça e tiveste uma noite agitada e chegaste a arrancar as roupas do corpo.
Isso é muito comum em pessoas não acostu-madas com umas taças de vinho. E
ontem, tiveste até alucinações, lembras-te? Prometo nunca mais te oferecer vinho. Sinto-me
culpado.
– E o que fazes aqui no meu quarto?
– Ora, Anita, estes são os meus
aposentos. Eu lavava o rosto aqui no quarto de banho, quando acordaste. Não
fiques preocupada, pois não vou te causar nenhum mal.
A essa altura da conversa Nefasta entrou
nos aposentos e confirmou para a jovem as turbulências da noite, quando ela se
livrou das roupas e procurou convencê-la de que tudo não passara de um sonho
agitado, provocado pelo vinho e acrescentou:
– Deixei-a dormir, assim, à vontade, para
não acordares.
–
Chega de conversa – completou Firmino. – Sai logo dessa cama, Anita, pois hoje
quero tomar o café da manhã contigo. Já pedi a Nefasta para preparar uma
suculenta refeição matinal.
Anita não se atreveu recusar o convite do
Poderoso, pois era mais uma ordem do que um convite. Levantou-se, procurou uma
das luxuosas roupas no armário
e, momentos depois, surgiu na
sala de refeições onde Firmino a aguardava com uma farta
mesa para o café da manhã.
– Sabes, Anita, estás linda como sempre.
Com esses trajes, pareces uma dama francesa a desfilar pelos cafés de Paris.
Sei que não conheces Paris, mas não perdes nada para suas belas mulheres.
– Eu não conheço Paris, mas o sr. a
conhece?
– Eu conheço o mundo todo, minha menina,
mas senta-te aqui bem próximo de mim, que Nefasta vai te servir. E, por favor,
não me chames de senhor.
Terminado o café, Firmino ordenou a
Anita que trocasse os trajes luxuosos por sua roupa de montaria, pois iriam dar
um passeio a cavalo, para que ela conhecesse a fazenda e as riquezas que ela
abrigava. Firmino mandou selar os cavalos, sendo que o de Anita era um garboso
cavalo branco, enquanto Firmino montava seu corcel negro, um soberbo animal,
irrequieto e perigoso.
Os cavaleiros saíram pela porteira dos
fundos da casa da fazenda e percorreram alguns metros até o alto de uma colina, de
onde se descortinava um belo panorama. Eram campos e mais campos, ao
longo do rio, até se perderem no horizonte, com verdes pastagens por onde
circulava o gado. Eram animais bem tratados, de raças europeias, sob os
cuidados de vaqueiros zelosos. Uns davam-lhes sal, em cochos colocados em
locais estratégicos, outros, próximo a um braseiro, faziam a marcação das
reses mais novas, com ferro em brasa, sempre com as inicias FC do todo poderoso
Firmino Constantino. Alguns vaqueiros galopavam atrás de novilhos arredios que
se separavam do grupo. Depois de um prolongado silêncio, Firmino falou:
– Vê, Anita, isso tudo não é maravilhoso?
Vê as pastagens exuberantes, observa como
são saudáveis e numerosos os animais e como são
diligentes os meus vaqueiros. Foram todos escolhidos a dedo, por mim,
pessoalmente.
– Na verdade, eu nunca tinha visto uma
fazenda como esta. Acho que não existe nada igual nesta região. Só não entendo
como eu nunca tenha ouvido falar dela, sendo tão próxima da fazenda da minha
família.
– O segredo é a alma do negócio. Sabes,
Anita, tudo isso que vês poderá um dia
te pertencer.
– Mas a que preço?
– Bem, tudo tem seu preço. E o preço do
que vês, saberás no momento apropriado.
Em seguida, esporeou o cavalo e,
seguido de Anita, desceu a colina em direção a um rebanho de ovelhas que um
daqueles vaqueiros esquisitos apascentava. Eles não falavam, nem olhavam para
as pessoas. Ao ver alguns cordeiros que saltitavam à volta das mães, Firmino
falou para o empregado:
– Aqueles dois ali, tu reservas para
mim...
– Reservar para quê? – perguntou Anita.
– Eles proporcionam um bom assado –
respondeu Firmino, e seguiu adiante.
O sol já estava a pino quando retornaram
à fazenda. Deixaram os animais nas cavalariças e se dirigiram à sede da propriedade,
passando antes pelo grande galpão, que ficava aos fundos da casa. Ali se
encontrava Nefasta com algumas criadas, que varriam o chão, limpavam os móveis,
como se preparassem o ambiente para uma grande festa. Num canto do galpão,
estava montado um estrado de madeira,
coberto com tapete vermelho e sobre
o qual fora
colocada uma grande cadeira, toda trabalhada em madeira de
lei. Alguns metros à frente do estrado era preparada uma mesa que mais lembrava
um altar.
– Vão dar uma festa, aqui? – perguntou
Anita a Firmino.
– Não é uma festa, mas uma reunião que
costumo fazer mensalmente com todos os empregados
para comemorar os bons
resultados comerciais da proprie-dade. É uma reunião exclusiva, para a qual não
convidamos estranhos. Na verdade, não passa de uma grande confraternização
entre todos aqui da fazenda, que faremos amanhã à noite.
Anita achou tudo muito estranho
e imaginou que algo muito grave estava por acontecer naquele
galpão e foi tomada de intenso temor. Dirigiu-se a seus aposentos para se
preparar para o almoço com Firmino, cujo convite não tinha coragem de recusar.
Ela percebeu que aquele homem era perverso e a dominava por completo, assim
como dominava a todos que o cercavam. Precisava cortar as amarras e se livrar
dele. Não lhe saíam da mente as imagens da festa de aniversário de Firmino, nem
aquele ritmo diabólico. Aquilo não fora um sonho, mas algo real, preparado por
uma mente poderosa e doentia.
Quando a noite chegou, Anita resolveu
se recolher mais cedo.
Logo dormiu e teve um sonho que ela interpretou como um
aviso. Ela viu um grande foco de luz e no meio dele lhe apareceu a figura humilde de Frei Gaspar, que dela se
aproximou, colocou a mão sobre sua cabeça e lhe disse:
– Anita, é preciso que saibas que Firmino
Constantino é a reencarnação do Demônio. Ele já te causou grandes males e
planeja coisas piores para teu corpo e para tua alma. Precisas te livrar dele,
o quanto antes. Amanhã à noite, ele vai realizar uma cerimônia maldita em companhia de seus asseclas. Quando eles estiverem
no auge da cerimônia, por volta da meia-noite, todos estarão ocupados. Segue
até à beira do rio, desce pela ribanceira e encontrarás uma canoa amarrada num
galho de árvore. Deves entrar na canoa e remar a favor da correnteza, até
estares bem longe daqui. Deus a guiará pelo caminho.
Anita acordou sobressaltada e não viu
mais a figura de Frei Gaspar. O sonho reforçou ainda mais a sua vontade de
evadir-se daquele lugar. Mas teria que agir com cautela, pois sabia que era
vigiada constantemente por
Nefasta e pelo temido Soldante. E ela ainda tinha bem claras
em sua mente as palavras da governanta, no dia em que chegou à fazenda: “Qualquer
traição é punida com muito rigor”.
A jovem costumava passear, todos os dias,
num gramado ao lado da sala de jantar para apanhar sol, pois Nefasta lhe dera essa permissão. Depois do sonho que
tivera, durante o passeio, naquela manhã, ela se aproximou um pouco mais do rio
que margeava a propriedade e chegou bem perto da ribanceira, que ficava a uns
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